Esta semana foi motivo de preocupação para mim desde antes de decidir fazer as 30 Semanas, pelo simples fato de que os povos Celtas do continente europeu perderam todos os seus mitos originais sob a dominação de Roma, diferentemente dos Celtas das Ilhas Britânicas, que não sofreram esse flagelo -- ou seja, este post quase foi escrito assim:
"Não se conhece nenhum dos mitos relativos a Endovélico. Voltem na próxima semana".
Mas, para muitos historiadores, essa ausência de mitos não é mais que um desafio a ser enfrentado: um fragmento de cerãmica aqui, uma linha de um cronista Grego ou Romano ali, um mito de outra tribo Celta ali, muitas vezes permitem conjecturar com alguma base e recriar os mitos perdidos, ou na pior das hipóteses criar mitos novos porém plausíveis.
Por exemplo, o relato de Estrabão sobre o costume dos povos do litoral da Lusitânia e Galícia de contemplar, num silêncio de temor e respeito, o Sol ao se por sobre o Atlãntico, sugere uma visão mítica do Sol, enfrentando todos os riscos, ao iniciar sua jornada noturna sob as águas e a terra rumo ao oriente, de onde voltará com sua luz para o mundo diurno, e aponta para uma oposição dia/noite, luz/trevas, Mundo/Outro-Mundo que, como já vimos, combina com a dupla natureza solar/ctônica de Endovélico.
Kondratiev apontou que essa dupla natureza do Javali -- que nos mitos da Irlanda e Gales é alternadamente o benigno instrutor e curador, como o javali branco de Marvan, e o poder sombrio da morte e destruição, como o Twrch Trwyth do Mabinogion -- é a força que faz girar a Roda do Ano, vista como uma Caça ao Javali Cósmica, cujos pontos críticos são a morte do Deus da Luz, ferido pelo Javali Negro (como no mito Irlandês de Diarmuid, onde na verdade caçador e caça estão misticamente ligados e matar um é também matar o outro) e o retorno triunfal do Deus de seu retiro no Outro-Mundo, que dividem o ano ritual numa metade luminosa/Verão e outra sombria/Inverno.
Provavelmente foi essa constelação de temas simbólicos que levou os clãs da Bruxaria Tradicional Ibérica à seguinte versão do mito: no Equinócio de Outono Endovélico, o Senhor da Luz Solar, sai para caçar o Javali destruidor e é por ele ferido de morte, sendo levado pelo Javali até as profundezas do Outro-Mundo e lá se tornando o Senhor dos Mortos; Ategina, sua consorte, que rege a força vital da Terra, vai até ele, deixando para trás o mundo que escurece e esfria a dormir sob o manto do Inverno, e nas profundezas da Terra ela reina conjuntamente com ele sobre as almas e os Ancestrais; quando chega o Equinócio da Primavera, ambos regressam ao mundo da superfície, Luz e Vida despertando a Natureza adormecida, e assim sucessivamente vão alternando entre os pólos sazonais de sua caminhada anual.
Como disse antes, não temos como confirmar a autenticidade histórica deste mito e declarar que era exatamente nisso que os antigos povos da Ibéria aceeditavam, mas a validade mítica deste relato, sua capacidade de ressoar nas almas dos que o lêem e representam ritualmente, é inegável e inescapável -- neste começo de Agosto, a pouco mais de um mês do Equinócio, quase dá para ouvir as raízes das plantas lentamente se movendo, como se se espreguiçassem, aguardando sonolentas que os Senhores da Morte voltem para reger a Vida sob a luz do Sol...
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