sexta-feira, 20 de março de 2015

Equinócio de Outono

Quando o Sol se fez escuro, na manhã do dia da Caçada do Javali, Ele já estava na floresta, seguindo pelas trilhas.
Olhou para o céu matinal por entre os ramos das árvores, viu as estrelas ressurgidas na noite restaurada, ouviu o súbito silêncio das aves intimidadas pela escuridão inesperada, e em todos estes presságios Ele viu o que seria desse dia.
(Não que ele já não soubesse, tendo repetido vezes sem fim o seu ciclo ritual -- os passos dessa dança cósmica lhe eram bem familiares, e os eventos celestes apenas acentuavam o tom dramático do que estava por vir, mas os hábitos do Oráculo que era o forçaram a parar por instantes para ler os sinais e deles extrair o sentido oculto).
A sombra passou, o dia nasceu após a pausa imprevista, e a Caçada seguiu, da aurora ao meio-dia, do meio-dia ao entardecer: logo Ele chegou na clareira no centro da grande floresta, e seguiu até a pedra elevada no centro das trilhas que ali se cruzavam.
Ele tocou as manchas de sangue que a recobriam, as mais recentes de meio ano atrás (quando foi a vez do Javali ser o sacrifício), as mais antigas se perdendo no tempo-fora-do-tempo, e esperou.
Logo (ou uma eternidade depois?) o som de galhos quebrados, o pânico de animais e aves fugindo da destruição encarnada que se movia entre eles, e o tremor que a pedra ecoava de cascos em corrida furiosa, anunciaram o fim da espera, e o Javali entrou na clareira sagrada.
Ele o saudou -- minha caça, meu irmão, meu outro eu, aqui estamos -- e ergueu a lança dourada, agora avermelhada pela luz do sol próximo do horizonte, dando o sinal para a dança começar; e era de uma dança que se tratava, ataque e defesa, avanço e recuo, golpe aparado revidado com contragolpe, uma eternidade (ou só um instante?) onde ambos deram o melhor de si, como sempre o davam, até que Ele fez o último passo, habilidosamente falho, que abriu a guarda para que o Javali o ferisse de morte, recuando então e esperando.
Ele andou os últimos passos, segurando a ferida fechada para não desperdiçar o sangue divino, a oferenda sagrada, que deixou correr livremente sobre a pedra.
O sacrifício está feito, disse Ele numa voz inesperadamente firme.
Andou até o Javali, que se curvou, todo furor agora cessado, e deixou que Ele montasse em seu dorso negro como a noite, negro como o manto Dele se tornava a cada instante, negro como a noite que agora chegava, o sol poente uma fração cor de sangue no horizonte.
Ele seguiu, montado no Javali, e ambos, opostos finalmente reconciliados, desapareceram na escuridão da floresta, nas trilhas que conduzem ao Outro-Mundo, onde Ele logo seria entronizado como o Senhor dos Mortos, e onde regeria na escuridão (tal como havia, até então, regido na luz) até a Roda girar novamente.
Porque é esse sacrifício recorrente, Deus e Fera, desde o início dos tempos, que mantém a Roda girando; é o sangue que impulsiona cada volta, e assim será para sempre.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Sir Terence David John Pratchett


Se fosse como num de seus vários livros da série de Discworld, hoje a Morte apareceria diante de Terry Pratchett (ou melhor, Sir Terence) e diria:

"SUA HORA CHEGOU. A PROPÓSITO, OBRIGADO POR ME DESCREVER TÃO BEM EM SUA OBRA"

(Ela está presente em todo livro da série, e sempre fala EM MAIÚSCULAS) -- depois da notícia trágica do seu diagnóstico de Alzheimer, que ele tenha partido tão já, aos 66, no meio de um último livro, não deixa de ser uma gentileza da Ceifadora...
Milhões de leitores espalhados pelo mundo (inclusive no Brasil, apesar das poucas e sofríveis traduções recentemente lançadas) vem seguindo a saga do Discworld nesses 32 anos desde o primeiro livro, "A Cor da Magia", encantados pela mistura de fantasia clássica, humor britãnico, e a mais surpreendente filosofia humanista, com tiradas como:

"O problema de se ter uma mente aberta é que as pessoas teimam em chegar e tentar colocar coisas dentro dela"

E muitos no meio Pagão já se perguntaram se ele seria secretamente um de nós, porque a percepção dele sobre bruxas, magia, deuses e o Universo é de uma profundidade e sabedoria tais que dão o que pensar -- coisas como:

"Bruxas não acreditam em deuses. Claro, elas sabem que eles existem, e tudo o mais, mas é que elas não acreditam neles, justamente porque os conhecem bem demais. Seria como começar a acreditar no carteiro, ou algo assim"

Mas é em diálogos como o da Morte com Susan, sua neta adotiva (NÃO perguntem, vão ler!) em "Hogfather", que ele chega ao seu melhor:

" 'Tudo bem', disse Susan, 'eu não sou estúpida. Você está dizendo que os humanos precisam de...fantasias para tornar a vida suportável.'
NÃO. HUMANOS PRECISAM DE FANTASIA PARA SER HUMANOS. PARA SER O PONTO ONDE O ANJO CAÍDO ENCONTRA O MACACO EM ASCENSÃO.
'Fadas-do-dente? Hogfathers?'
SIM. COMO PRÁTICA. VOCÊS TEM QUE COMEÇAR APRENDENDO AS PEQUENAS MENTIRAS.
'Para daí acreditarmos nas grandes?'
SIM. JUSTIÇA. DEVER. MISERICÓRDIA. ESSE TIPO DE COISAS.
'Mas isso não é a mesma coisa!'
É MESMO? ENTÃO PEGUE O UNIVERSO, PULVERIZE-O ATÉ O PÓ MAIS FINO E PENEIRE-O NA PENEIRA MAIS FINA, E ENTÃO MOSTRE-ME UM ÁTOMO DE JUSTIÇA, UMA MOLÉCULA DE MISERICÓRDIA. E NO ENTANTO VOCÊS AGEM COMO SE HOUVESSE ALGUM TIPO DE ORDEM NO UNIVERSO PELA QUAL ELE POSSA SER JULGADO.
'Sim. Mas as pessoas tem que acreditar nisso, ou então qual é o sentido de tudo?'
EXATAMENTE. VOCÊS PRECISAM ACREDITAR EM COISAS QUE NÃO SÃO VERDADEIRAS. DE QUE OUTRO MODO ELAS PODEM VIR A SÊ-LO?"


Ele sabia que seus dias estavam contados, mas isso não o fez deixar de criar livros (ditando quando não podia mais escrever) nem o fez mudar sua posição sobre si mesmo e seu lugar na ordem das coisas.
Bênçãos dos Deuses e não-Deuses a ele em sua jornada!
Que Endovélico o conduza serenamente ao seu lugar de direito entre os Sábios no Outro-Mundo!