Quando o Sol se fez escuro, na manhã do dia da Caçada do Javali, Ele já estava na floresta, seguindo pelas trilhas.
Olhou para o céu matinal por entre os ramos das árvores, viu as estrelas ressurgidas na noite restaurada, ouviu o súbito silêncio das aves intimidadas pela escuridão inesperada, e em todos estes presságios Ele viu o que seria desse dia.
(Não que ele já não soubesse, tendo repetido vezes sem fim o seu ciclo ritual -- os passos dessa dança cósmica lhe eram bem familiares, e os eventos celestes apenas acentuavam o tom dramático do que estava por vir, mas os hábitos do Oráculo que era o forçaram a parar por instantes para ler os sinais e deles extrair o sentido oculto).
A sombra passou, o dia nasceu após a pausa imprevista, e a Caçada seguiu, da aurora ao meio-dia, do meio-dia ao entardecer: logo Ele chegou na clareira no centro da grande floresta, e seguiu até a pedra elevada no centro das trilhas que ali se cruzavam.
Ele tocou as manchas de sangue que a recobriam, as mais recentes de meio ano atrás (quando foi a vez do Javali ser o sacrifício), as mais antigas se perdendo no tempo-fora-do-tempo, e esperou.
Logo (ou uma eternidade depois?) o som de galhos quebrados, o pânico de animais e aves fugindo da destruição encarnada que se movia entre eles, e o tremor que a pedra ecoava de cascos em corrida furiosa, anunciaram o fim da espera, e o Javali entrou na clareira sagrada.
Ele o saudou -- minha caça, meu irmão, meu outro eu, aqui estamos -- e ergueu a lança dourada, agora avermelhada pela luz do sol próximo do horizonte, dando o sinal para a dança começar; e era de uma dança que se tratava, ataque e defesa, avanço e recuo, golpe aparado revidado com contragolpe, uma eternidade (ou só um instante?) onde ambos deram o melhor de si, como sempre o davam, até que Ele fez o último passo, habilidosamente falho, que abriu a guarda para que o Javali o ferisse de morte, recuando então e esperando.
Ele andou os últimos passos, segurando a ferida fechada para não desperdiçar o sangue divino, a oferenda sagrada, que deixou correr livremente sobre a pedra.
O sacrifício está feito, disse Ele numa voz inesperadamente firme.
Andou até o Javali, que se curvou, todo furor agora cessado, e deixou que Ele montasse em seu dorso negro como a noite, negro como o manto Dele se tornava a cada instante, negro como a noite que agora chegava, o sol poente uma fração cor de sangue no horizonte.
Ele seguiu, montado no Javali, e ambos, opostos finalmente reconciliados, desapareceram na escuridão da floresta, nas trilhas que conduzem ao Outro-Mundo, onde Ele logo seria entronizado como o Senhor dos Mortos, e onde regeria na escuridão (tal como havia, até então, regido na luz) até a Roda girar novamente.
Porque é esse sacrifício recorrente, Deus e Fera, desde o início dos tempos, que mantém a Roda girando; é o sangue que impulsiona cada volta, e assim será para sempre.
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