domingo, 24 de agosto de 2014

Endovélico, Semana 7: Nomes e Epítetos

Esta semana, só para variar, temos evidências epigráficas (isto é, inscrições) de sobra para basear este post, e não deixaremos essa oportunidade passar batida.
Até o momento dispomos de 72 inscrições em altares dedicadas a Endovélico, e nenhuma outra Divindade bate este recorde; os títulos dados a ele pelos Romanos incluem Numen (ser sagrado), Deo (Deus), Sacrum (Sagrado), Domine (Senhor), com superlativos como "presentissimum et praestativissimum" (muito presente e muito prestativo) que denotam um senso de respeito e gratidão por essa Divindade tão generosa com suas dádivas e tão pronta a atender as súplicas de seus devotos -- e nem seria de estranhar, pois a tradução mais aceita do nome de Endovélico é "o Deus muito Bom", não no sentido de "bonzinho", e sim no de ser "capaz, competente, eficaz" (curiosamente, esse exato título é dado, pelos mesmos motivos, ao Dagda irlandês, o que não significa que haja uma identidade desses Deuses tão diferentes um do outro).
No entanto, nessas 70 e tantas inscrições, o nome dele sofre todo tipo de modificação, aparecendo como Andevelico, Enobolico, Andovélico, Endebólico, etc, etc -- a maioria dos pesquisadores considera essas variações como sendo acidentais, consequência da dificuldade dos Romanos de lidar com a fonética das tribos Ibéricas e expressá-la em seu alfabeto, mas certos autores sugerem que algumas dessas variantes seriam deliberadas e expressariam aspectos diferentes do deus: por exemplo, Enobolico seria traduzível como "o Muito Negro" (bem adequado a um deus ctônico), e Andevélico como "o Senhor da Flor" (talvez no seu aspecto solar/renascido).
E não devemos esquecer de Vaélico, que divide os pesquisadores entre os que o consideram como uma Divindade distinta (e que apontam seu nome como sendo cognato da palavra Proto-Celta para "lobo") e os que o consideram como sendo o próprio Endovélico sob outra variação nominal (minha intuição os percebe como distintos, assim como no caso de outro deus homófono, Indibilis).
Para encerrar, só queria mencionar uma expressão registrada num dos altares consagrados a ele, que de modo oblíquo, sem mencionar seu nome, expressa do jeito mais inquestionável o seu poder e o respeito que o mesmo comandava: EX IMPERATO AVERNO, "pela determinação emanada das profundezas".

domingo, 17 de agosto de 2014

Endovélico, Semana 6: Panteão

Esta semana a dificuldade é de outra ordem, pois o próprio conceito de "panteão", que se aplica bem aos Keméticos, de quem peguei emprestado esse desafio das 30 Semanas, simplesmente não existe como tal entre os povos da Ibéria -- diferentes povos, e mesmo diferentes aldeias, mesmo que relativamente próximas, cultuavam Divindades diferentes, e são muito raros os casos em que uma delas teve culto em mais de, digamos, cinco localidades; a ênfase era no culto a uma, duas ou três Divindades locais, quase na categoria de Genii Loci, ou seja, entidades vinculadas a uma colina, rio, fonte ou outra locação geográfica, considerada como a morada do Genius, como no caso de Endovélico, associado às colinas de São Miguel da Mota e Rocha da Mina e ao rio Lucefecit (há quem alegue que ele teve culto no santuário de Panóias, bem longe do Alentejo, e lá seria sincretizado com o deus romano-egípcio Serápis, mas isso é controverso); assim, vou considerar o termo panteão em latu senso, me limitando às outras Divindades do meu culto pessoal, sabendo bem que elas certamente não foram cultuadas conjuntamente em sua origem.
Já falei de Ategina semana passada, e agora vou falar de outros Deuses e Deusas "revelados" a mim pelo livro "A Voz dos Deuses", começando por Tongoenabiago, o deus da Fonte do Ídolo em Braga (o que sugere que ele era cultuado por meus ancestrais diretos, já que meu avô paterno veio de lá), cujo nome vem de uma raiz céltica significando "juramento", que sugere que havia o costume de se jurar pelas águas da fonte, com Tongoenabiago como testemunha do juramento; eu intuo como seus atributos o cão, a cor branca, o grou e o amieiro, e como objeto ritual o cálice.
Coaranioniceus é outro, desta vez na região do Monte Santo de Olisipo, hoje o Parque de Monsanto em Lisboa: alguns o associam ao chamado "Ares Lusitano", deus guerreiro a quem se sacrificavam cavalos, bodes e prisioneiros de guerra, e também como regente das minas de ouro e metais da região, e assim eu o vejo como senhor da abundância e da guerra, com o cavalo e o vento (uma lenda registrada pelos cronistas romanos fala da manada de cavalos sagrados, nascidos de éguas fecundadas pelo vento, que ali viviam) como seus atributos.
Runesocesios ("do mistério da lança"), cultuado em Évora, a mim sugere um guerreiro mais feroz que Coaranioniceus, com sua lança sendo o raio dos céus, e regendo o carvalho, o touro e a espada.
Bandua, padroeiro dos bandos de guerreiros unidos por votos sagrados, é às vezes chamado "o que ata" e uma imagem recém-encontrada, supostamente dele, o mostra com uma corda atada à volta do peito como símbolo desse vínculo; gamo, teixo e corvo são para mim consagrados a ele, que é um dos raros cultuados em diversas localidades, com títulos anexos ao nome como Banderaiecos, Bandioilenaico, Bandueaetobrigos, etc, etc...
Trebaruna, "mistério da casa", é a guardiã do lar (e ligada ao fogo da lareira) e a protetora dos heróis, tocha numa mão, lança na outra, carneiro, pássaro-preto e sorveira como atributos -- Leite de Vasconcelos escreveu muito sobre ela, tanto textos acadêmicos como poemas, e ela foi divulgada ao mundo quando o grupo Moonspell compôs uma música em homenagem a ela, o que a torna uma das Divindades mais conhecidas fora de Portugal.
As duas Deusas que se seguem não são mencionadas por nome no livro de João Aguiar, mas se impuseram a mim de modo difícil de recusar...
A Deusa da Serra da Lua, em Sintra, se manifestou a mim vestida de negro e velada, com a lebre, coruja e salgueiro como seus atributos; o nome que me veio foi Cintia, o antigo nome de Sintra, mas ela avisou que tinha outro nome que mais tarde eu descobriria, e agora a conheço como Iccona.
A Deusa da Serra da Estrela, ou os Montes Hermínios, se apresentou como Hermínia (mas disse que não era "exatamente" assim o seu nome, que anos depois li num artigo sobre os Celtas da Ibéria como Erbina), associada por mim ao urso, falcão e bétula.
Como disse, uma assembléia de Divindades de locais e características as mais diversas, uma pequena parte de todas as cultuadas na Ibéria, dificilmente um panteão nos moldes tradicionais, e que só tem em comum seu culto no meu altar e sua presença em minha alma.


domingo, 10 de agosto de 2014

Endovélico, Semana 5: Família


O tema desta semana era tão preocupante quanto o anterior, pela mesma ausência de mitos historicamente atestados, e com o agravante de que definir laços familiares exige uma certa precisão de informações com a qual não podemos contar; porém, uma vez que chegamos a um mito reconstruído na semana passada, vamos nos ater a ele e ver o que conseguimos.
Ategina, a consorte de Endovélico, também chamada de Atégina ou Ataecina, tem seu nome em várias inscrições em altares ou ex-votos dedicados a ela; seus atributos incluem a cabra (como a da ilustração acima) e o cipreste (eu intuo também a macieira e o ganso), e os Romanos a identificaram com Prosérpina, tanto no aspecto primaveril das flores e frutos quanto no aspecto sombrio de Rainha dos Mortos -- as inscrições a mostram sendo chamada de Dea (Deusa), Sancta (Santa) e Domina (Senhora), e curiosamente uma parte não desprezível dessas inscrições invoca seu auxílio para amaldiçoar pessoas que, seja por roubos ou outros malefícios, prejudicaram os invocadores, uma prática chamada de defixio que os Romanos já usavam antes de conquistar a Ibéria, escrevendo a maldição em folhas de chumbo -- a quantidade dessas maldições sugere que eram bem-sucedidas, desde que as pessoas não perderiam seu tempo com uma Divindade que não as atendesse, e na verdade muitos desses ex-votos agradecem as dádivas obtidas...
Como vimos na semana passada, ao iniciar o Outono Ategina vai em busca de Endovélico, seguindo-o ao Outro-Mundo subterrâneo e lá reinando a seu lado sobre as almas dos mortos, até retornar com ele à superfície, onde os vivos os aguardam, na entrada da Primavera, e então despertando a vida adormecida pelo Inverno (a interpretação do seu nome, Ate-Gena, é "a renascida" ou "a que faz renascer").
Alguns sites dizem que ela também rege a Lua -- imagino que seja para fazer par com o Sol de Endovélico, pois não achei nada mais que justifique essa afirmação.
Sem outros possíveis membros da família de Endovélico, nem mesmo como palpite/intuição/GPN, encerro por aqui...


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Endovélico, Semana 4: Mitos

Esta semana foi motivo de preocupação para mim desde antes de decidir fazer as 30 Semanas, pelo simples fato de que os povos Celtas do continente europeu perderam todos os seus mitos originais sob a dominação de Roma, diferentemente dos Celtas das Ilhas Britânicas, que não sofreram esse flagelo -- ou seja, este post quase foi escrito assim:
"Não se conhece nenhum dos mitos relativos a Endovélico. Voltem na próxima semana".
Mas, para muitos historiadores, essa ausência de mitos não é mais que um desafio a ser enfrentado: um fragmento de cerãmica aqui, uma linha de um cronista Grego ou Romano ali, um mito de outra tribo Celta ali, muitas vezes permitem conjecturar com alguma base e recriar os mitos perdidos, ou na pior das hipóteses criar mitos novos porém plausíveis.
Por exemplo, o relato de Estrabão sobre o costume dos povos do litoral da Lusitânia e Galícia de contemplar, num silêncio de temor e respeito, o Sol ao se por sobre o Atlãntico, sugere uma visão mítica do Sol, enfrentando todos os riscos, ao iniciar sua jornada noturna sob as águas e a terra rumo ao oriente, de onde voltará com sua luz para o mundo diurno, e aponta para uma oposição dia/noite, luz/trevas, Mundo/Outro-Mundo que, como já vimos, combina com a dupla natureza solar/ctônica de Endovélico.
Kondratiev apontou que essa dupla natureza do Javali -- que nos mitos da Irlanda e Gales é alternadamente o benigno instrutor e curador, como o javali branco de Marvan, e o poder sombrio da morte e destruição, como o Twrch Trwyth do Mabinogion -- é a força que faz girar a Roda do Ano, vista como uma Caça ao Javali Cósmica, cujos pontos críticos são a morte do Deus da Luz, ferido pelo Javali Negro (como no mito Irlandês de Diarmuid, onde na verdade caçador e caça estão misticamente ligados e matar um é também matar o outro) e o retorno triunfal do Deus de seu retiro no Outro-Mundo, que dividem o ano ritual numa metade luminosa/Verão e outra sombria/Inverno.
Provavelmente foi essa constelação de temas simbólicos que levou os clãs da Bruxaria Tradicional Ibérica à seguinte versão do mito: no Equinócio de Outono Endovélico, o Senhor da Luz Solar, sai para caçar o Javali destruidor e é por ele ferido de morte, sendo levado pelo Javali até as profundezas do Outro-Mundo e lá se tornando o Senhor dos Mortos; Ategina, sua consorte, que rege a força vital da Terra, vai até ele, deixando para trás o mundo que escurece e esfria a dormir sob o manto do Inverno, e nas profundezas da Terra ela reina conjuntamente com ele sobre as almas e os Ancestrais; quando chega o Equinócio da Primavera, ambos regressam ao mundo da superfície, Luz e Vida despertando a Natureza adormecida, e assim sucessivamente vão alternando entre os pólos sazonais de sua caminhada anual.
Como disse antes, não temos como confirmar a autenticidade histórica deste mito e declarar que era exatamente nisso que os antigos povos da Ibéria aceeditavam, mas a validade mítica deste relato, sua capacidade de ressoar nas almas dos que o lêem e representam ritualmente, é inegável e inescapável -- neste começo de Agosto, a pouco mais de um mês do Equinócio, quase dá para ouvir as raízes das plantas lentamente se movendo, como se se espreguiçassem, aguardando sonolentas que os Senhores da Morte voltem para reger a Vida sob a luz do Sol...