sexta-feira, 4 de abril de 2014

Noé



Acabei de assistir a recém-estreada versão da história de Noé, e muito embora esse não seja em absoluto um mito dos Celtas (embora os monges da Irlanda tenham tentado a todo custo criar uma conexão celta, declarando que o primeiro povo a chegar lá foi a tribo de Cessair, neta de Noé, pouco depois do dilúvio) a abordagem do diretor Darren Aronofsky (que também nos deu o belíssimo Fonte da Vida) entrelaçou no mito original temas tão relevantes ao nosso tempo que merecem comentário.
Para começar, o filme deixa completamente de lado o tom beato com que temas bíblicos costumam ser tratados -- a atmosfera é desavergonhadamente mítica, com direito a céus onde as estrelas brilham durante o dia, animais fantásticos que fazem parte da fauna local, um Matusalém, avô de Noé, que mais parece um Merlin antediluviano com seus chás visionários e bênçãos de fertilidade, e a revelação de que os humanos partilham seu jovem mundo (lembrem, aquela é a décima geração depois de Adão) com os gigantescos Guardiães, uma fusão do mito dos Nefilim do Gênesis com os Grigori do livro de Enoch, os anjos caídos que ensinaram as artes e ciências aos humanos -- só por isso tudo, o filme já mereceria ser visto por todos, mesmo pelos Pagãos mais abraãmicofóbicos...
Mas o motivo central do filme é o embate entre duas visões de mundo, simbolizadas pelas duas linhagens descendentes de Adão: os filhos de Caim, nascidos para explorar e devastar a Terra, construindo a ferro e fogo cidades por toda a parte, poluindo a água, destruindo florestas e matando animais para comer, e os filhos de Seth, vegetarianos, pacíficos quando não provocados, tentando viver em harmonia com o mundo à sua volta e seguir a vontade do seu Criador (que curiosamente nunca é chamado de Deus, e que só se manifesta em visões, não por vozes celestes).
Nessa versão, Noé não parece nada antropocêntrico -- após a visão do Dilúvio, ele está convencido de que a Arca se destina apenas aos "inocentes", ou seja, aos animais ("porque eles ainda vivem como nos tempos do Jardim"), e uma visita ao acampamento dos cainitas, onde ele testemunha horrores de todo tipo, só faz confirmar sua convicção de que toda a Humanidade deve se extinguir, e mesmo ele e sua família, quando as águas baixarem e os animais forem liberados no mundo purificado, não merecerão nada mais além de morrer sem descendência.
E essa visão do homem-como-incuravelmente-mau é uma que se encontra facilmente em foruns e redes sociais Pagãs, sobretudo quando alguma notícia sobre poluição, maus-tratos a animais, mudanças climáticas é postada -- um coro se ergue, cantando a perversidade sem cura do ser humano e desejando sua extinção imediata, pelo bem da pobre-Natureza-sofrida... e quem adere ao coro não percebe o quanto ele é o lado oposto do antropocentrismo que eles tanto abominam, ao colocar o ser humano em oposição à Natureza e, portanto, fora dela; porque extinguir rinocerontes ou leopardos é "mau" e extinguir os humanos é "bom"? Quem disse que somos especiais, para o bem ou o mal?
Como Noé vem a aprender, não é a espécie humana que merece a extinção, mas sim as diferentes civilizações humanas que vivem em desarmonia consigo mesmas, com as outras e com o mundo em que vivem, e que não precisariam perecer se estivessem dispostas a mudar para modos mais iluminados de ser: não é o homem, mas todo um modo de vida, que hoje está tentando destruir o mundo, e cabe a nós, Druidistas, e aos outros que partilham de nosso ideal de harmonia com o mundo, aprender a deixar esse modo de vida do lado de fora de nossas Arcas interiores, onde ele será lavado e dissolvido pelas mesmas águas da mudança que nos levarão a um mundo renovado.

Um comentário:

luke disse...

Assisti esse filme semana passada, com certeza foi muito bem feito, diferente de qualquer coisa que ja vi relacionada a Biblia. Cheguei esperando ver o óbvio mas com certeza foi retratado de forma diferente, que prende e com certeza com aquele clima muito mitico, sem aquela apologia ao Deus o tempo todo, fez com que a historia ficasse muito mais envolvente e se tornou uma aventura muito boa. Gostei bastante