Neste dia recém-acabado, discussões de todo tipo ocorrerm na internet sobre a propriedade, ou não, de se louvar São Jorge, o matador de dragões, um santo que deu origem a um culto popular tão poderoso que até os Islãmicos, monoteístas exclusivos, participam dele; há algo naquela imagem arquetípica do guerreiro a cavalo enfrentando o dragão que toca algum lugar oculto da alma, e no entanto muitas pessoas na comunidade pagã denunciam veementemente qualquer referência ao ex-soldado da Capadócia como propaganda cristã de opressão ao paganismo, que eles vêem retratado no dragão ferido e subjugado pelo santo -- sim, já vimos essa discussão no dia de Pádraig, mas agora acho que terei de me estender mais sobre o assunto e usar outra abordagem, a fim de tentar sanar o que vejo como um mal-entendido de séculos e que, enquanto não for abordado frente a frente, barrará o crescimento e amadurecimento do Paganismo moderno.
Como disse antes, a imagem de Jorge no cavalo enfrentando o dragão tem um apelo universal -- todas as culturas Indo-Européias (e não só elas) tem uma imagem de herói X monstro, Perseu contra Cetus, Hércules contra a Hidra, Sigurd contra Fafnir, e os Celtas tem as lendas de monstros habitando lagos e mares, mas mais frequentemente é outra besta, como o javali, que assume o papel de adversário arquetípico: já aí saímos do dualismo cristão de Divino X diabólico, mas então a que se refere esse antagonismo?
No caso Celta, essa oposição reflete uma outra, miticamente mais antiga, que é aquela entre os Tuatha Dé Danann, os deuses, e os Fomorianos, entidades primordiais que habitam a Irlanda desde o princípio; alguns textos os descrevem como tendo um só olho, uma só mão, um só pé, o que na minha imaginação lhes dá uma forma longilínea e algo serpentina. Eles não são malignos, ideologicamente falando, não são a versão irlandesa das hostes do Inferno, mas são intrinsecamente perigosos como um lobo faminto, um terremoto ou uma tempestade o são -- eles são as forças brutas da Natureza, contra as quais se levanta o trabalho da Tribo/Cultura, cujas artes e ofícios são prerrogativa dos Deuses; na batalha final, os Fomorianos são derrotados mas não exterminados, acabando por revelar, a contragosto, os segredos do plantio, cultivo e colheita, as únicas artes desconhecidas pelos Tuatha Dé Danann -- a partir daí, surge um ciclo definido ao longo do ano agrícola, opondo verão e inverno, cultivo e repouso, luz e escuridão, cada qual marcando ora o domínio de uma facção, ora a outra: o monstro derrotado pelo herói sempre volta no ano seguinte, não há verão sem que o inverno o siga, e essa verdade implícita nos mitos pagãos, derivada da natureza cíclica da sua visão do tempo, acaba se perdendo no tempo linear e unidirecional dos monoteístas, e então o santo mata o dragão de uma vez para sempre, sem volta, sem o entendimento de que ele é parte essencial da ordem das coisas, por mais inconveniente e até nocivo que seja.
E eis o ponto: agora que sabemos a natureza do dragão, e vemos o quão maior ela é do que uma mera alegoria caluniosa dos pagãos ignorantes que devem dar lugar aos cristãos triunfantes, porque ainda damos ouvidos à versão cristã do mito, mesmo enquanto o rejeitamos e contra ele protestamos?
O que eu chamo olhos-de-druida, o outro modo de ver as coisas, é metade embasamento histórico baseado nos fatos e metade criatividade sustentada pela Inspiração -- o que proponho, meu desafio aos que lêem isto, é o de subverter o discurso cristão da lenda de São Jorge, desidentificando seus protagonistas dos "partidos" em disputa, devolvendo o mito desideologizado ao tempo cíclico, e honrando a Serpente do Inverno Escuro lado a lado com o Cavaleiro da Luz do Verão, iguais ainda que opostos, aprendendo a vê-los sob cada roupagem mítica que os oculte.
Subversivo, talvez...tenho certeza que os cristãos e pagãos lendo isso estão igualmente horrorizados com a minha proposta (que nega a ambos os lados o vitimismo persecutório das Catacumbas e do Tempo das Fogueiras, o que já seria um grande progresso em ambas as facçôes) -- mas eu não vejo, para o Druida moderno vivendo numa civilização insana e autodestrutiva como a nossa, outro destino que não seja a subversão cultural, e é a esse destino que os convido, sob o signo de Jorge e Ascalon, reconciliados ainda que para sempre opostos.
(sim, esse é o nome esquecido do dragão nas lendas medievais...)
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