Sacrifício animal religioso é o tema da vez, desde que uma recente
decisão do STF manteve o direito das religiões de matriz africana de continuar com a prática sem impedimentos -- como não podia deixar de ser, o clamor dos opositores à decisão sobe aos céus, criaturinhas indignadas protestando contra a crueldade sancionada legalmente, agindo por puro reflexo sem parar para analisar a questão e seus prós e contras.
Sim, o Druidismo tem algo a dizer sobre essa questão, porque não podemos nos alienar de nada que é humano (e/ou animal) e porque vários aspectos dela nos afetam diretamente e devem ser trazidos à atenção para debate.
I -
O Círculo da Vida
É irônico pensar que as pessoas desinformadas que protestam contra o abate ritual de animais são as mesmas que cantam "
The Circle of Life" do Rei Leão - com uma lagriminha no canto do olho - sem parar pra pensar sobre o que, realmente, a canção descreve; ninguém questiona o fato explícito de que o protagonista é um predador, filho e neto de predadores, e que seus fiéis "súditos" vão se tornar, cedo ou tarde, carcaças ainda sangrando a serviço de seu apetite.
Isso é o Círculo da Vida.
E sim, ele é sagrado.
E mesmo os predadores não escapam dele, porque um dia vão morrer e o Círculo os entregará àqueles que limparão seus ossos e os devolverão à reciclagem do ecossistema.
Chocados? Enojados? Horrorizados?
Pois, essas reações aos fatos da vida são o fruto amargo e murcho dos milênios em que a civilização ocidental disse que os seres humanos são "a coroa da Criação" e isentos das leis que regem o mundo natural, mas também dos três séculos da Revolução Industrial e do afastamento do mundo natural por ela causado - já não caçamos nossa carne, nem a abatemos em nosso quintal, apenas compramos bandejas de isopor e plástico com algo que nem remotamente faz lembrar o animal que era, e assim nos cremos inocentes e de mãos limpas e decididamente não-cúmplices daquela morte.
Esse horror ao que é desavergonhada e explicitamente orgânico, essa "
biofobia" como
John Michael Greer a chama, é parte da reação contra o sacrifício: a ideia de que alguém possa deliberadamente derramar o sangue quente e denso de um animal e expor suas vísceras no lugar consagrado enche os desinformados profanos de um horror sem limites, porque não conseguem ver ali uma declaração explícita da sacralidade da vida ofertada e da devoção dos que a fazem - e antigos instintos desviados de seu propósito também tem parte nisso, porque a visão do sangue do abate sempre evoca a ideia "esse sangue podia ser meu", e onde antes esse pensamento levava à identificação positiva com o animal morto ("como ele me alimenta hoje, um dia eu alimentarei outros", a perfeita expressão do Círculo) hoje essa reação é reprimida como sendo uma ameaça à (ilusória) excepcionalidade e superioridade humanas.
Mas, para além da biofobia, outros fatores se levantam contra o sacrifício.
II -
Inquisição
Sempre é bom lembrar, e eu o faço aqui, que a ação julgada no STF começou da parte de deputados da dita "bancada evangélica" abrindo processo contra casas de culto afrobrasileiras pela alegada "crueldade" contra os animais abatidos: não foi uma ação piedosa, movida apenas por idealismo e preocupação genuína com o bem-estar animal, mas tinha intenções mais insidiosas.
Lembrem-se, os evangélicos vivem sob o dogma de que os outros animais não tem almas, só os humanos, e a interpretação distorcida que eles fazem de
Gênesis 1:28 os leva a crer que os humanos são "donos" do mundo e de tudo e todos que há nele, e não há aí lugar para interpretações menos literais e mais gentis.
O interesse deles na questão não passa nem de longe pela preocupação com o bem-estar animal, mas sim pela denúncia e condenação das religiões afro como sendo desumanas, cruéis e demoníacas, e portanto merecedoras de perseguição até a extinção total - e toda vez que um ativista, evangélico ou não, assume o discurso discriminatório de que as religiões que praticam o sacrifício são "primitivas, não-evoluídas, atrasadas" (que meia hora de leitura de tratados de antropologia e religião comparada provariam estar totalmente errado) os Inquisidores ganham mais um aliado inconsciente e regozijam com a conquista.
III -
Quem Ganha com Isso?
Como acabamos de ver, o clamor contra o sacrifício, agregando veganos, ativistas animais e outros movimentos humanitários, está sendo usado como massa de manobra pela bancada evangélica, para seus planos
dominionistas e supremacistas, e esse povo não se deu conta que seu discurso contra a opressão animal está sendo usado como munição para legitimar a opressão aos cultos afro.
Mas até agora só vimos os argumentos contrários, e o que há por trás deles: e os argumentos a favor? O que realmente acontece num sacrifício, e quem ganha com isso?
Nas religiões antigas, em várias religiões modernas, e nas raízes hebraicas da cristandade, o sacrifício era a prática central da devoção às Divindades: na prática, era uma refeição comunitária, uma comunhão, entre as Divindades e os devotos, onde o animal sacrificado era ritualmente abatido e repartido entre a porção no altar, para oferenda divina, e a porção a ser consumida pelo povo. Os animais a ser sacrificados tinham de ser saudáveis, muito bem tratados, e honrados como partes essenciais do culto que eram, e o treinamento sacerdotal incluía a ciência e arte de como abater o animal de modo rápido, preciso, sem dor e sem medo (e qualquer evidência de falha em qualquer desses quesitos tornava o procedimento inválido para fins de culto).
No caso dos praticantes das religiões afro (para não mencionar os especialistas judeus e islãmicos no abate ritual kosher/halal) as mesmas obrigações e especificidades de treinamento se aplicam, a mesma ética da morte digna está presente.
Não se abatem cães, gatos ou outros animais não- comestíveis, as aberrações que os ativistas escancaram como exemplos do que eles supôem que acontece no culto regular não procedem e são obra de sádicos fora de qualquer contexto religioso legítimo, então o seu pet não está na mira dos cultos afro e nunca estará.
Se essa ética, essa dignidade de prática e trato animal, fosse a regra nos abatedouros leigos (onde o Inferno se manifesta na Terra), esta civilização seria muito mais saudável de corpo e alma, mas enquanto tratarmos os animais como blocos de carne descartável, a carne que formarmos em nossos corpos a partir do que comemos será igualmente objetificada e descartável, como tudo o mais na civilização ocidental moderna; se os veganos centrassem seu ativismo no combate às práticas abjetas da indústria da carne (que é a verdadeira inimiga da santidade do Círculo da Vida) ao invés de reforçar o preconceito religioso e a agenda dominionista, aí sim as coisas poderiam mudar para melhor.
No Druidismo moderno não fazemos sacrifícios animais (exceto, talvez, quem tenha criação de animais em sua fazenda, já pratique o abate para consumo alimentar, e queira introduzir uma dimensão devocional/cúltica ao que já faz regularmente, nesse contexto seria adequado) mas reconhecemos o pleno direito dos nossos irmãos de matriz africana de fazê-los sem obstáculos ou prejuízos, sabendo bem que a liberdade religiosa de uns favorece a todos e que a ignorância e o preconceito estão aí para serem combatidos sem trégua.
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