sábado, 9 de março de 2024

O Segredo de Ragnell

 


Diz a lenda que um perplexo Sigmund Freud um dia perguntou "afinal, o que querem as mulheres?'
Diz a lenda que um frustrado Jacques Lacan um dia proclamou "A Mulher não existe",
Diz a lenda que, em um antigo conto do ciclo Arturiano, encontra-se a resposta para a questão que exasperava ambos os pensadores (para não falar da imensa maioria dos homens não-Celtas...),
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Lá estava Gawain, o nobre cavaleiro da Távola Redonda, sentado na câmara nupcial.
Lá estava Ragnell, a Repulsiva, aquela criatura sobrenaturalmente feia, sentada a seu lado no leito nupcial.
Ela havia cumprido com sua parte do trato, revelando ao rei Artur a resposta ao enigma do gigante da floresta e, assim, salvando o reino de Logres da catástrofe.
E agora ela cobrava seu preço, a mão do melhor dos cavaleiros do Reino.
E ali, após uma cerimônia de casamento que mais parecia um funeral, e um banquete que era quase um velório, os dois estavam, enfim, a sós.
E ela pediu timidamente um beijo a ele.
E ele a beijou sem hesitação.
E diante dos olhos de Gawain estava uma mulher tão inacreditavelmente bela quanto antes fora terrível.
Ela disse que seu irmão, o gigante da floresta que havia desafiado Artur, a havia posto sob a maldição da feiúra, e que o beijo dele havia quebrado essa maldição -- mas agora, disse ela, ele deveria escolher se a preferia bela de dia e horrenda à noite, ou o contrário.
Escolheria ele o tormento privado ou a humilhação pública, o deleite secreto ou a ostentação diurna?
E ele disse:
"Não cabe a mim escolher, escolhe tu por nós dois".
E ela riu, bateu palmas e exclamou "essa é a resposta do enigma de meu irmão!"
"E qual era o enigma, afinal?" perguntou ele, ainda sob o encanto de sua beleza.
" 'O que as mulheres mais querem no mundo?' O rei Artur procurou por um ano e um dia e não encontrou a resposta a essa pergunta, até que eu a revelasse a ele"
"Mas, qual é a resposta?"
"Soberania. Nós, mulheres, queremos o poder de decidir sobre nossas vidas, e as daqueles a quem amamos; ao dar a mim a decisão sobre como deveria aparecer ao mundo, tu respondeste o enigma, e assim a maldição de meu irmão foi completamente quebrada, e assim serei bela tanto de noite quanto de dia!"
E houve regozijo e alacridade, e a história termina aqui; quem tiver olhos, que veja.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Penda´s Fen

 



Meu irmãozinho Alexandre me indicou, agora eu passo a indicação adiante.

Um filme de 1972 (contemporâneo do Wicker Man), originalmente um episódio de uma série de teleteatro da BBC, imediatamente tornado cult e misteriosamente desaparecendo de vista por décadas até cópias restauradas surgirem para lembrar as novas gerações desta obra-prima.

Imagine que você é um adolescente de 17 anos no interior da Inglaterra dos anos 50, filho de um ministro presbiteriano, organista na igreja do pai, aluno de escola militar, plenamente convencido do destino manifesto da Pátria em liderar a civilização ocidental, sob as bênçãos de Deus e alicerçada na Família – resumindo, um jovem conservador em flor, do tipo que a história recente do Brasil nos trouxe às mancheias e infesta as redes sociais.

Mas eventos variados farão deste último verão antes da idade adulta um período de descobertas, questionamentos e crises morais digno de qualquer caminho iniciático; o que eu chamo de a “pergunta-chave” deste filme é “qual é o meu lugar?”, porque Stephen não tem amigos ou namorada, mal interage com os colegas da escola, fixado num passado inglês idílico representado pela sua adoração pela música de Elgar – e é nesse contexto de estar “fora de lugar” que ele começa a fazer contato com outra ordem de existência, desde sonhos com anjos, visitações de demônios, um encontro com o fantasma de Elgar (que lhe revela o segredo por detrás de sua obra críptica “Enigma”), e nesse tempo todas as suas certezas sobre raça, sexualidade, patriotismo e religião são drasticamente arrancadas dele, que no final rejeita o Sistema que antes era a própria definição da sua existência, personificado na Mãe e no Pai da Inglaterra, que tentam trazê-lo de volta a seu jugo com louvores à sua integridade e pureza, o futuro da Nação, ao que ele responde “eu não sou nada puro, eu sou misturado (...) Trevas mescladas com Luz, eu sou barro e chama!”

...e é então que Penda, o último rei pagão da Inglaterra, intervém e o liberta da sedução/ameaça do casal arquetípico inglês, dizendo que ele, e os outros guardiões da terra, pouco a pouco estão sendo empurrados para fora da existência, e que é em pessoas como Stephen, capazes de acolher e integrar sua “impureza”, que está a esperança de uma Inglaterra, e mesmo do mundo, renovados:

“Sê secreto, Filho, sê estranho, sombrio, verdadeiro, impuro, e dissonante. Cuida de nossa chama”

Na sua crítica à industrialização, ao domínio das máquinas, ao sacrifício das massas por seus governantes, aos ataques ao meio ambiente, esse filme de meio século atrás é curiosamente atual (nem vou falar na sua visão subversiva de que a esperança final está na volta às raízes pagãs da civilização, porque sou suspeito)

E nem vou falar da paisagem, da trilha sonora, das imagens oníricas e do clima surreal que permeia o filme, porque isso tem que ser experimentado e não descrito.

ASSISTAM! (aqui)

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

30DV - Revisão

E, tendo chegado ao fim destes 30 Dias do Aliado Vegetal, a que conclusões chegamos?
Como já disse anteriormente, foi uma experiência particularmente intensa intensa de imersão no mundo particular da Amoreira, um reforçar dos laços entre nós, e uma verdadeira educação sobre como se aproximar da planta em todos os níveis; como prática didática, eu recomendaria a todos os Vates ou outros seguindo caminhos com ênfase no herbalismo como um processo onde inevitavelmente a pessoa sai da experiência sabendo, fazendo e sendo mais do que antes de ter entrado no desafio.
E vocês, o que acharam, quando tentarão fazer os seus 30DV?

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

30DV - Valores do Herbalista

O tema de hoje é central, no sentido de que se eu fosse fazer outra jornada dos 30DV com outra planta (e isso não está fora de cogitação) eu repetiria o mesmo texto a cada vez, desde que não há motivos para os valores da prática do herbalismo serem diferentes a cada planta estudada.
Dito isso, eu começaria pelo aspecto ambiental/ecológico: o bom herbalista procura manter o equilíbrio do ambiente onde colhe suas plantas, não poluindo o local, não danificando as plantas no processo da colheita, deixando sempre uma parte sem colher para usufruto dos seres do habitat (incluindo outros herbalistas!) e fazendo uso integral so que colheu, sem desperdiçar nada, e sempre que possível retribuir ao ambiente, seja devolvendo a matéria descartada da planta após seu processamento, seja periodicamente fornecendo água e/ou adubo ao local.
Outro aspecto é o espiritual: o bom herbalista participa de uma visão de mundo animista, onde as plantas são pessoas de direito e que devem ser respeiradas como tal; criar hábitos como o de pedir licença às entidades do local antes de entrar no ambiente, pedir permissão à planta para colher o que precisa (e explicando o que pretende fazer com o que colheu), deixar periodicamente oferendas de agradecimento pelo auxílio prestado, meditar frequentemente nos aspectos psíquicos da planta e estabelecer relacionamentos recíprocos com ela, ao invés de considerá-la uma mera fonte de matéria prima, e procurar ter em mente a essência viva da planta durante o preparo dos medicamentos, a serem considerados aspectos manifestados da entidade-planta em vez de meros compostos moleculares frios e sem vida.
E por fim o aspecto social: o bom herbalista percebe a si mesmo como membro de um meio social com o qual está em interação constante, e ao qual serve com sua arte e ciência: é seu dever manter-se atualizado com boas práticas e procedimentos, ter sempre em mente o bem-estar das pessoas que a ele recorrem, partilhar com elas não só o conhecimento das ervas mas também a responsabilidade e as decisões sobre a melhor conduta a cada caso, e lembrar sempre que elas também são entidades tanto espirituais quanto materiais, que não basta dizer "tome este chá, volte em 2 semanas" sem tentar entender os processos que levaram a doença a se manifestar e ajudar a pessoa a entendê-los e ser participante ativa do processo de cura.
E encerro com este blog, que acho que vocês vão gostar ;-)

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

30DV - Pessoal

Hoje é o dia mais subjetivo dos 30 Dias, porque implica em avaliar a mim mesmo (aquela pergunta que eu gosto de fazer a quem completou outros desafios, " o que mudou, o que continua o mesmo?")
Descobri que é realmente divertido ir atrás das informações requeridas a cada dia, e ver o que vou aprender nesta etapa; nas partes mais práticas, o desafio é encontrar tempo suficiente para realizar as tarefas no dia em questão, como quando fiz a tintura de amora no que seria um dia astrologicamente inadequado.
Eu me vi muito mais consciente das amoreiras presentes nos meus ambientes naturais, e isso levando em conta que eu já tinha uma relação próxima com ela antes deste desafio.
E descobri que incluir o chá de amora no meu dia-a-dia faz sentido, levando em conta todas as suas propriedades naturais e sobrenaturais.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

30DV - Experiência

O ideal seria que eu passasse pelos procedimentos aqui descritos neste mesmo dia, mas isso não será possível, exceto em parte, então faremos o que der.
Uma experiência ideal de imersão na Amoreira e seus dons começaria com um café da manhã com geléia de amora no pão e uma xícara de chá de amora, com suco de amora e folhas de amora refogadas no almoço, mais chá de amora para arrematar; outra dose de chá à tarde, talvez mais pão com geléia de lanche; e no fim do dia, após a última xícara de chá depois do jantar, uma defumação de folhas secas de amora e um banho de folhas frescas para fazer a limpeza dos eflúvios do dia, algumas gotas de tintura de amoreira tomadas com água, uma breve meditação (incluindo os nomes e a poesia associada) e dormir com um talismã de folhas sob o travesseiro - desafio quem fizer isso a NÃO sentir nada nesse contato intensivo com o espírito, o corpo e a alma da Amoreira!

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

30DV - Canção/Poema

Muita gente recebeu a Inspiração sob os galhos da amoreira, e o poema acima é um dentre inumeráveis deles; pesquisando, encontrei referências a uma cantiga de roda da Inglaterra vitoriana que, como tantas delas, tem origens meio sombrias -- pessoalmente, eu gosto de formas mais curtas, como o haiku:
mas não posso deixar de lembrar da poesia absurdista e lírica de Edward Lear:
e, embora eu tenha uma queda por limericks, não encontrei nenhum sobre amoreiras, então só me restou escrever um:

Havia um sujeito, lá em Madureira,
Que só tecia louvores à amoreira -
     "Boa sombra, fruta saborosa,
     Folha medicamentosa,
És minha paixão da vida inteira"

Disse, à amoreira na China,
O bicho-da-seda: "Menina,
     Se você me acompanhar
     Através de terra e mar,
Reinará em cada esquina
"