quinta-feira, 21 de setembro de 2017

300


Há 300 anos, a Europa estava em uma encruzilhada.
Recém-saída de um conflito religioso de longa duração, tentada pelo materialismo como reação contra o dogmatismo, berço dos primeiros presságios de novas tecnologias mas cega à ameaça destas ao mundo natural - uma civilização perdida em busca de novos caminhos e cercada de todos os riscos inerentes às opções já tentadas.
Foi neste contexto que dois eruditos fascinados pela pesquisa do passado, John Aubrey e John Toland, realizaram sua magnum opus, o verdadeiro milagre da ressurreição dos mortos, o processo de reunir citações de cronistas greco-romanos, tradições folclóricas semi-esquecidas, pesquisas recentes sobre as ruínas megalíticas, costurar essa miscelânea de elementos díspares com muita filosofia panteística, e reunir os outros sonhadores que vinham trabalhando na mesma obra, para que, naquela tarde do Equinócio de Outono de 1717, no salão de reuniões da Apple Tree Tavern, a Ancient Druid Order fosse oficialmente criada, e antigas sementes esquecidas por séculos finalmente rebrotassem.
Sob o signo de Libra, o poder da concórdia e equilíbrio, a nova Ordem manteve apenas princípios gerais - a reverência ao mundo natural como a imagem do Sagrado, a dedicação ao auto-aperfeiçoamento espiritual, e a insistência em manter suas cerimônias abertas ao público, ao ar livre, "em face ao Sol, o olho da Luz" - dando a seus membros a liberdade de crer, pensar e falar como quisessem, um exercício de tolerância que, três séculos depois, é causa de vergonha para nós, que ainda precisamos aprender essa lição.
Sem o trabalho dos pioneiros, o Druidismo não seria mais que uma palavra esquecida em livros empoeirados de história antiga, uma nota de pé de página curiosa mas irrelevante, um fragmento morto e enterrado do passado - mas, como foi dito antes, "tudo o que nasce deve morrer, mas tudo o que morre deve renascer", e assim o espírito perene do Druidismo mais uma vez revestiu-se de carne e reapareceu num mundo para o qual tinha muito a contribuir.
Amanhã, no dia do Equinócio, a comunidade druídica brasileira e mundial, unida em pensamento, palavra e ato, comemora os primeiros três séculos da filosofia renascida com cerimônias, festas, eventos de todo o tipo, em gratidão aos Ancestrais do Espírito, os Druidas originais e os renascidos, na certeza de que "as canções de nossos ancestrais são as canções de nossos filhos" e que a Grande Canção nunca cessa.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Arte


Está acontecendo de novo.
Usando argumentos não dessemelhantes aos da campanha contra a "arte degenerada" feita pelo bigodinho ridículo há 90 anos, uma horda dita "apartidária", cuja sigla não escreverei para não lhes fazer propaganda, conseguiu mover parte suficiente da opinião pública para cancelar uma exposição de arte com temas polêmicos, ofensivos ao bom gosto, à moral e aos bons costumes esta semana.
O que escrevo agora é a minha opinião, apoiada por argumentos que considero válidos e considerando as consequências morais e sociais dela decorrentes.
Como já disse antes, o Druidismo é talvez a única religião que, na classe dos Bardos, inclui as artes como parte crucial da sua filosofia e prática - para nós, o ponto culminante da experiência religiosa, a manifestação da Awen, é descrito como sendo nada mais nada menos que a Inspiração, que não se limita ao campo artístico mas necessariamente o compreende.
A questão é que a Inspiração é uma lei em si mesma, e não se importa em ir contra leis, códigos morais ou artigos de fé, desde que consiga se expressar da forma mais poderosa possível; um poder selvagem, anárquico e elemental, que não se limita às manifestações mais convencionais de beleza e harmonia mas as expressa lado a lado com obras mais caoticamente criadas.
Quando Platão baniu os poetas da sua República, ele estava expressando sua indignação contra essa tendência iconoclasta e rebelde dos artistas, que desde Homero chegavam às raias da blasfêmia ao retratar os Deuses como sujeitos às imperfeições e mesquinharias mortais - não deixa de ser irônico que seu mestre, Sócrates, tenha cometido por meio da filosofia o mesmo "pecado" que os poetas cometeram com sua arte, e seu castigo tenha sido mais severo que o mero banimento...
Não por coincidência, esta semana tivemos furacões no Caribe e terremotos no México - muita gente, mesmo os que se dizem pagãos, esquece que a Natureza não se resume a flores, borboletas e arco-íris, mas também inclui esses aspectos mais devastadores e "feios"; do mesmo modo a Arte, cuja Inspiração flui da mesma fonte primordial que origina os fenômenos naturais, cria o belo e o terrível, o casto e o obsceno, o que nutre e o que pode destruir, e não temos voz nisso tanto quanto nossa opinião não é consultada quando um vulcão entra em erupção.
Como a Verdade no quadro de Jean Léon Gerome, acima exposto, a Arte às vezes choca, saindo nua e desavergonhada de seu refúgio, e o chicote em sua mão muitas vezes é menos doloroso que a mera nudez da sua presença.
A Arte é perigosa.
Não é para todo mundo.
Deve haver controle sobre ela - NÃO na sua criação, ou mesmo na sua exposição, mas sim quanto ao público que pode assisti-la; classificação etária, avisos de possível trauma/conflito, são estratégias legítimas e razoáveis para lidar com os riscos que a exposição à Arte no seu aspecto mais cru pode causar, e eliminam a suposta necessidade de censura prévia ou posterior.
E para os que não se conformam que tanta "indecência" passe impune, eu lembro que há precedentes, os mais sacrossantos possíveis: a Bíblia mostra cenas de assassinato com requintes de crueldade, incesto de filhas com o pai, e trechos de pornografia explícita SEM nenhum tipo de condenação ou sequer uma reprimenda, e vem sendo lida há séculos sem que ninguém tenha levantado a menor objeção a estes e outros trechos polêmicos, ofensivos ao bom gosto, à moral e aos bons costumes.