quinta-feira, 19 de março de 2020

Ataque, defesa


Estamos vivendo os “tempos interessantes” da proverbial maldição chinesa.
O mundo está de joelhos sob o ataque da menor criatura existente, que compensa o pouco tamanho com a avassaladora superpopulação que se espalhou, nação a nação, pessoa a pessoa, e cuja jornada ainda não terminou.
Dadas as devidas proporções, trata-se de uma guerra contra o invasor (que na verdade não “invadiu” coisa nenhuma, estava quieto em seu nicho ecológico natural até ser inadvertidamente trazido ao contato com os primeiros humanos insuspeitosos).
E, no entanto, o mesmo povinho ingênuo que nos deu o “gratiluz” está muitíssimo incomodado com essas metáforas de invasão, guerra, armamento, e está pregando nas redes sociais (em postagens que fizeram meus olhos sangrar) que devíamos abandonar essa “violência simbólica” e buscar o “diálogo” e a “coexistência pacífica” com o Coronavírus
(....)
Como disse e direi enquanto tiver forças, o Druidismo tem a Natureza como sua mestra, fonte de Inspiração e livro sapiencial, e é ela quem nos mostra que os seres vivos competem entre si pela Vida, mas que em ambientes ecologicamente estáveis essa competição não é necessariamente brutal e impiedosa: o leão e a gazela podem beber água no mesmo riacho africano, lado a lado, e desde que ele já esteja alimentado ele não verá necessidade de atacar a gazela só porque ela está ali disponível.
Esta pesquisa mostra que os pacientes que tiveram melhor recuperação e sobrevida pós-carcinoma foram os que, ao invés de se entregar passivamente, decidiram lutar contra a doença (inclusive com visualizações onde os glóbulos brancos eram exércitos atacando e destruindo o invasor canceroso) e essa determinação mobilizou do modo mais eficaz as defesas imunológicas.
E, falando em defesas, vocês já ouviram falar de Cells at Work?
É uma série de animação japonesa cujos personagens são células sanguíneas antropomórficas vivendo e trabalhando para manter o corpo em que vivem saudável e defendido contra ameaças – um dos protagonistas, o Neutrófilo, é gentil e paciente em repouso mas, em luta contra germes e vírus, um guerreiro cuja fúria de batalha rivaliza com a do legendário Cú Chulainn da Irlanda. Em comparação, a outra protagonista, a Hemácia, parece inocente, tímida e inexperiente (e é tudo isso mesmo), mas tem a força moral de admitir seu desajeitamento, trabalhar duro para aprender e melhorar, e a determinação inabalável de cumprir sua tarefa mesmo quando tudo parece perdido, o que é uma forma menos óbvia mas igualmente importante de coragem.
Os Celtas, a quem devemos a tradição druídica, valorizavam imensamente essas virtudes mais “enérgicas”, e tinham os seus guerreiros em alta conta, não como invasores movidos pela violência e cobiça, mas como defensores de seu povo; embora os Druidas exortassem o povo à paz sempre que possível, não se opunham ao direito de defesa pelas armas (e alguns deles, como Cathbad, eram eles próprios guerreiros temíveis em batalha), então nossa opinião sobre o papel da agressividade bem colocada é o exato oposto da do povinho gratiluz, que não entende o que ocorre.
Nestes tempos interessantes, todos nós estamos em guerra.
Nosso dán nos levou a estarmos vivos nesta época e lugar, e nos chama à ação – seja na frente de batalha como os Neutrófilos, seja na resistência da retaguarda das Hemácias, de acordo com os talentos e temperamento de cada um, e nunca devemos nos esquecer que os Deuses e não-Deuses estão aí nos apoiando e inspirando para fazer o que é certo, hoje e sempre.
(mas antes disso, aproveitem o isolamento/quarentena, entrem na Netflix e assistam Cells at Work, garanto que não se arrependerão).

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Gratidão


Virou moda essa história.
“Gratidão”.
“Gratiluz”.
As pessoinhas ditas “espiritualizadas” agora só respondem assim quando alguém lhes faz um favor ou dá alguma coisa.
Porque dizer “obrigado” é negativo.
“Obriga” a pessoinha recebedora a retribuir.
E todos sabemos que “obrigação” é igual a “opressão”, não é mesmo?
(........)
Então, gentis pessoinhas-de-luz, eu tenho uma boa e uma má notícia para vocês.
Sim, vocês estão certas,“obrigado” implica em uma obrigação com a pessoa que fez o favor/ deu o presente.
Não, isso NÂO é uma opressão sobre o eu-cósmico-livre-e-ilimitado de vocês!
Então, quando olhamos para a cosmovisão celto-druídica, vemos que tudo o que existe, dos Deuses ao grão de pó, está ligado a tudo o mais, uma imensa rede capilar de relacionamentos onde o sangue que flui é o poder criativo da Oran Mor, e absolutamente nada pode se separar dessa rede e continuar existindo.
Dar-e-receber é um processo simultâneo e contínuo.
A todo instante, recebemos dons de inúmeros seres passados e presentes, e a todo instante concedemos dons a inúmeras criaturas presentes e futuras.
Cada ação nossa é parte desse processo, conscientemente ou não.
Aqueles de nós que já temos uma certa consciência do processo tentamos fazer com que o que damos seja sempre o melhor de nossa capacidade e intenção, de modo a ser realmente para benefício de todos, incluindo a nós mesmos.
Nesse dar-e-receber, a relação de reciprocidade não implica em opressão – eu recebo, e ao receber estou “obrigado” a dar em troca não por leis ou entidades julgadoras, mas porque a natureza essencial da rede universal implica em que todo ato tenha uma resposta.
Se dois amigos tem o hábito de se encontrar para comer pizza nas tardes de sexta-feira, e a cada vez um deles paga pelos dois, e um certo dia um deles percebe que perdeu a conta e não sabe se hoje é a vez dele ou não, o que ele faz?

a) tira do bolso a agenda onde contabilizou datas, quem pagou e quanto a cada vez
b) pega a conta da mão do garçom antes do amigo, paga sem piscar, e recomeçam a contagem partindo daí

...se você respondeu a), desculpe, mas a sua amizade não presta e não quero saber dela, desde que você dá mais valor ao acerto de contas que ao encontro semanal em si: em se tratando de amigos que se vêem a cada semana, que diferença faz de quem é a vez de pagar?
Algum deles está “obrigado” a essa situação, ou ela foi livremente tomada, movida que foi pela relação de amizade deles?
Essa ojeriza a dever obrigações, de depender de outros, de ser “obrigado” a fazer coisas em vez de viver livre e despreocupado, nasce da ilusão egoísta de que é possível ser independente, não dever nada a ninguém e não depender de nada além de si, de que todas as respostas e capacidades de que se precise estão dentro do indivíduo e não precisam vir de fora dele – o mesmo olhar-para-o-umbigo que já vimos antes, vão e ilusório, que se desfaz em bruma diante da revelação da interdependência de todas as coisas que a Natureza nos ensina e que nós, Druidas, reconhecemos como parte essencial da realidade.
Dito isto, eu sei que tenho muito a agradecer.
Mesmo um annus horribilis como 2019 tem muitas bênçãos pelas quais dizer “obrigado” de boca cheia, e muitas dádivas a retribuir.
Obrigado, à toda a Vida, por mais um ano.