quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Gratidão


Virou moda essa história.
“Gratidão”.
“Gratiluz”.
As pessoinhas ditas “espiritualizadas” agora só respondem assim quando alguém lhes faz um favor ou dá alguma coisa.
Porque dizer “obrigado” é negativo.
“Obriga” a pessoinha recebedora a retribuir.
E todos sabemos que “obrigação” é igual a “opressão”, não é mesmo?
(........)
Então, gentis pessoinhas-de-luz, eu tenho uma boa e uma má notícia para vocês.
Sim, vocês estão certas,“obrigado” implica em uma obrigação com a pessoa que fez o favor/ deu o presente.
Não, isso NÂO é uma opressão sobre o eu-cósmico-livre-e-ilimitado de vocês!
Então, quando olhamos para a cosmovisão celto-druídica, vemos que tudo o que existe, dos Deuses ao grão de pó, está ligado a tudo o mais, uma imensa rede capilar de relacionamentos onde o sangue que flui é o poder criativo da Oran Mor, e absolutamente nada pode se separar dessa rede e continuar existindo.
Dar-e-receber é um processo simultâneo e contínuo.
A todo instante, recebemos dons de inúmeros seres passados e presentes, e a todo instante concedemos dons a inúmeras criaturas presentes e futuras.
Cada ação nossa é parte desse processo, conscientemente ou não.
Aqueles de nós que já temos uma certa consciência do processo tentamos fazer com que o que damos seja sempre o melhor de nossa capacidade e intenção, de modo a ser realmente para benefício de todos, incluindo a nós mesmos.
Nesse dar-e-receber, a relação de reciprocidade não implica em opressão – eu recebo, e ao receber estou “obrigado” a dar em troca não por leis ou entidades julgadoras, mas porque a natureza essencial da rede universal implica em que todo ato tenha uma resposta.
Se dois amigos tem o hábito de se encontrar para comer pizza nas tardes de sexta-feira, e a cada vez um deles paga pelos dois, e um certo dia um deles percebe que perdeu a conta e não sabe se hoje é a vez dele ou não, o que ele faz?

a) tira do bolso a agenda onde contabilizou datas, quem pagou e quanto a cada vez
b) pega a conta da mão do garçom antes do amigo, paga sem piscar, e recomeçam a contagem partindo daí

...se você respondeu a), desculpe, mas a sua amizade não presta e não quero saber dela, desde que você dá mais valor ao acerto de contas que ao encontro semanal em si: em se tratando de amigos que se vêem a cada semana, que diferença faz de quem é a vez de pagar?
Algum deles está “obrigado” a essa situação, ou ela foi livremente tomada, movida que foi pela relação de amizade deles?
Essa ojeriza a dever obrigações, de depender de outros, de ser “obrigado” a fazer coisas em vez de viver livre e despreocupado, nasce da ilusão egoísta de que é possível ser independente, não dever nada a ninguém e não depender de nada além de si, de que todas as respostas e capacidades de que se precise estão dentro do indivíduo e não precisam vir de fora dele – o mesmo olhar-para-o-umbigo que já vimos antes, vão e ilusório, que se desfaz em bruma diante da revelação da interdependência de todas as coisas que a Natureza nos ensina e que nós, Druidas, reconhecemos como parte essencial da realidade.
Dito isto, eu sei que tenho muito a agradecer.
Mesmo um annus horribilis como 2019 tem muitas bênçãos pelas quais dizer “obrigado” de boca cheia, e muitas dádivas a retribuir.
Obrigado, à toda a Vida, por mais um ano.

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