segunda-feira, 1 de abril de 2019

Acorrentados

Vamos conversar sobre uma questão de mitologia comparada.
Todos certamente ouviram falar de Prometeu, o Titã Acorrentado do mito grego, preso no pico do Cáucaso com uma águia a lhe devorar o fígado, castigado pelo duplo pecado de desafiar os Deuses e de dar à Humanidade por ele criada uma condição mais elevada do que o Olimpo desejava -- todos os revolucionários românticos dos séculos XVIII e XIX eram apaixonados por ele e o retrataram nas artes e literatura da época como um avatar da Liberdade do espírito humano.
Aí encontramos no cerne do mito cristão a figura de Lúcifer, o Caído, o mais belo e sábio dos anjos, que ousou interferir nos planos do Ciumento para a Humanidade recém-nascida e lhes abriu os olhos para a realidade de sua condição, sendo então banido do Céu e acorrentado a esta Terra, junto com os humanos por ele iniciados no pensamento autônomo e livre; outros revolucionários, de índole mais antireligiosa e antinomianista, também o adotaram como seu padroeiro.
Mal refeitos da surpresa da semelhança icônica e mítica entre os dois, voltamos o olhar para o Norte, e eis que encontramos Loki, o Forjador de Mentiras, amarrado numa caverna no centro do mundo, com uma serpente gotejando veneno em sua face, cada espasmo de dor abalando os alicerces da Terra: sim, uma vez é coincidência, duas casualidade, mas três é conspiração...
Analisando o que os três tem em comum, vemos que não são Deuses propriamente ditos, mas circulavam livremente e com honra entre eles antes de sua rebeldia; que eram todos conhecidos por seu intelecto poderoso e amplo e sua língua ágil; que todos tem como atributo simbólico o Fogo/Luz (no caso de Loki, uma etimologia discutível de seu nome o associa à chama); e que seu crime fundamental foi o de questionar os Deuses e apontar os limites de seu poder e sabedoria, levantando um espelho em cuja imagem os Deuses não quiseram se reconhecer. Nos dois primeiros casos, eles manifestam um interesse caloroso pelos seres humanos e não medem esforços para despertar neles as faculdades superiores do intelecto (mas em Loki este aspecto aparentemente está ausente).
Podemos então falar num mito específico, O Deus Acorrentado?
Se procurarmos bem, outras mitologias o tem presente, reais ou mesmo fictícias (o Melkor do Silmarillion de Tolkien e o Dyaus do ciclo da Atlântida de Marion Zimmer Bradley são os primeiros que me ocorrem).
Mas, então...porque NÃO HÁ um Acorrentado nos mitos dos Celtas? Há incontáveis Deuses sábios, astutos e eloquentes, há Deuses do Fogo e da Luz a mancheias, há imagens do acorrentamento em si mesmo (Cu Chulainn ferido, amarrando a si mesmo no menir para lutar e morrer em pé) mas esses elementos não se reúnem na mesma configuração já vista.
Nisso, como em tantas outras coisas (como a aparente ausência de um Mito da Criação), os Celtas teimam em ser diferentes do resto. Mas porque isso?
Eu tenho uma hipótese, surgida ao olhar as culturas grega, cristã e nórdica de um lado e a céltica do outro, com olhos-de-Druida.
Nos três exemplos do Acorrentado, ele é aquele-que-desafia, o que se opõe à superioridade (presumida) dos Deuses e toma partido dos seres humanos contra Eles: a relação homem/Divindade é a mais assimétrica e desigual possível, e o papel do Acorrentado é ajustar o fiel da balança um pouco mais à favor da humanidade -- mas não vemos isso acontecendo nos mitos celtas, até onde os conhecemos: ali a distância ontológica e existencial entre os dois lados é menor, as relações entre eles são bem menos carregadas, e assim não se faz necessária uma figura para impor limites aos Deuses nem para defender os humanos de Sua ação.
Nossos Deuses não exigem de nós que nos prostremos em submissão abjeta a Seus pés, nem obediência cega, nem abdicação do livre-arbítrio: podem ser severos mas não cruéis, rigorosos mas não opressores, capazes de traçar limites mas não castrar as almas, e é por essa razão, além de inúmeras outras, que merecem nosso amor e devoção, em nome da liberdade que o Acorrentado tanto preza.

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