quarta-feira, 30 de abril de 2014

Portas X Muros


Amanhã a comunidade druídica do hemisfério Sul (excetuando os que seguem o calendário da Roda do Norte) comemora o festival céltico do Samhain, o fim/começo do ano, o dia de reverenciar os Ancestrais, a noite em que os mortos e os ainda por nascer visitam suas famílias terrenas -- e que deu origem à festa completamente secular do Halloween, mas isto é outra história...
Já virou um clichê pagão dizer que nesta data, e nos dias antes e depois dela, o véu entre os mundos fica mais fino, e mesmo os menos sensitivos percebem que algo fora do comum acontece, um cheiro do sobrenatural invade o cotidiano, e só dias depois a normalidade mundana é restaurada...mas vamos olhar com mais cuidado esta noção do "véu" e o que ela pressupõe das relações entre o Outro Mundo e o nosso.
Começo por uma pergunta simples: qual é a distãncia entre este mundo e o Outro?
Já aviso que a tradição não ajuda -- se de um lado a história de Donn, filho de Mil, sugere uma rota por mar, com paradas específicas, outros mitos falam de transições instantãneas e muitas vezes involuntárias, geralmente envolvendo lugares/tempos ditos liminares como o crepúsculo, a orla do mar, o espaço entre duas árvores ou pedras megalíticas, algo tão fácil como ir de um cômodo da casa a outro passando pela porta entre eles.
Um conceito fundamental nas culturas Indo-Européias é o da Ordem universal, que sustenta a Criação e é sustentada pelos ritos e ações humanas; uma manifestação dessa Ordem aparece no mito de Rõmulo e Remo fundando a cidade de Roma -- Rõmulo traça os limites da futura cidade com um arado de boi, e ao chegar ao local designado para os portões ele levanta a lâmina do arado, pousando-a mais à frente; Remo, para zombar dele, cruza a fronteira pela linha do arado, não pelo portão, e Rômulo o mata ali mesmo pela transgressão da ordem humana, reflexo da Ordem universal.
Muros e barreiras tem a função de delimitar e separar, não podem ser cruzados diretamente sem serem destruídos, mas é para isso que existem as portas -- ao invés de postular um "véu" ou membrana entre os mundos, a ser rasgado sem cerimônia todos os anos, uma expressão da Ordem violada pelo Caos, não parece muito mais razoável imaginar um ou mais portais ligando os mundos, conhecidos apenas pelos Sábios, e abertos ao viajante?
Foi por isso que os fundadores da Ár nDraíocht Féin, a ADF, incluíram como parte da sua cosmologia e liturgia o conceito do Portal entre o Outro Mundo e o nosso, guardado/controlado por uma Divindade do tipo Psicopompo, e que nos ritos é deliberadamente evocado e aberto pela ação conjunta dos ritualistas e da Divindade para permitir a livre troca de bênçãos entre os Deuses, Ancestrais e Espíritos da Natureza e os participantes humanos do rito, e que no encerramento é expressamente fechado pelo Psicopompo até a próxima vez.
Voltando à pergunta anterior -- qual é a distância entre este mundo e o Outro? -- a noção do Portal torna sua resposta irrelevante: tanto faz se a jornada entre ambos é de 3 dias, 3 meses ou 3 anos, ou se são tão próximos como a cara e a coroa da mesma moeda, a distância se dissolve pela magia do Portal e seu Guardião, e os Ancestrais nos visitam no festival sempre renovado, partilhando do banquete, da música e do fogo da hospitalidade a eles devida.
Eles estão batendo na porta, é falta de educação deixá-los esperando, faça-os entrar!

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A Restauração de Ascalon

Neste dia recém-acabado, discussões de todo tipo ocorrerm na internet sobre a propriedade, ou não, de se louvar São Jorge, o matador de dragões, um santo que deu origem a um culto popular tão poderoso que até os Islãmicos, monoteístas exclusivos, participam dele; há algo naquela imagem arquetípica do guerreiro a cavalo enfrentando o dragão que toca algum lugar oculto da alma, e no entanto muitas pessoas na comunidade pagã denunciam veementemente qualquer referência ao ex-soldado da Capadócia como propaganda cristã de opressão ao paganismo, que eles vêem retratado no dragão ferido e subjugado pelo santo -- sim, já vimos essa discussão no dia de Pádraig, mas agora acho que terei de me estender mais sobre o assunto e usar outra abordagem, a fim de tentar sanar o que vejo como um mal-entendido de séculos e que, enquanto não for abordado frente a frente, barrará o crescimento e amadurecimento do Paganismo moderno.
Como disse antes, a imagem de Jorge no cavalo enfrentando o dragão tem um apelo universal -- todas as culturas Indo-Européias (e não só elas) tem uma imagem de herói X monstro, Perseu contra Cetus, Hércules contra a Hidra, Sigurd contra Fafnir, e os Celtas tem as lendas de monstros habitando lagos e mares, mas mais frequentemente é outra besta, como o javali, que assume o papel de adversário arquetípico: já aí saímos do dualismo cristão de Divino X diabólico, mas então a que se refere esse antagonismo?
No caso Celta, essa oposição reflete uma outra, miticamente mais antiga, que é aquela entre os Tuatha Dé Danann, os deuses, e os Fomorianos, entidades primordiais que habitam a Irlanda desde o princípio; alguns textos os descrevem como tendo um só olho, uma só mão, um só pé, o que na minha imaginação lhes dá uma forma longilínea e algo serpentina. Eles não são malignos, ideologicamente falando, não são a versão irlandesa das hostes do Inferno, mas são intrinsecamente perigosos como um lobo faminto, um terremoto ou uma tempestade o são -- eles são as forças brutas da Natureza, contra as quais se levanta o trabalho da Tribo/Cultura, cujas artes e ofícios são prerrogativa dos Deuses; na batalha final, os Fomorianos são derrotados mas não exterminados, acabando por revelar, a contragosto, os segredos do plantio, cultivo e colheita, as únicas artes desconhecidas pelos Tuatha Dé Danann -- a partir daí, surge um ciclo definido ao longo do ano agrícola, opondo verão e inverno, cultivo e repouso, luz e escuridão, cada qual marcando ora o domínio de uma facção, ora a outra: o monstro derrotado pelo herói sempre volta no ano seguinte, não há verão sem que o inverno o siga, e essa verdade implícita nos mitos pagãos, derivada da natureza cíclica da sua visão do tempo, acaba se perdendo no tempo linear e unidirecional dos monoteístas, e então o santo mata o dragão de uma vez para sempre, sem volta, sem o entendimento de que ele é parte essencial da ordem das coisas, por mais inconveniente e até nocivo que seja.
E eis o ponto: agora que sabemos a natureza do dragão, e vemos o quão maior ela é do que uma mera alegoria caluniosa dos pagãos ignorantes que devem dar lugar aos cristãos triunfantes, porque ainda damos ouvidos à versão cristã do mito, mesmo enquanto o rejeitamos e contra ele protestamos?
O que eu chamo olhos-de-druida, o outro modo de ver as coisas, é metade embasamento histórico baseado nos fatos e metade criatividade sustentada pela Inspiração -- o que proponho, meu desafio aos que lêem isto, é o de subverter o discurso cristão da lenda de São Jorge, desidentificando seus protagonistas dos "partidos" em disputa, devolvendo o mito desideologizado ao tempo cíclico, e honrando a Serpente do Inverno Escuro lado a lado com o Cavaleiro da Luz do Verão, iguais ainda que opostos, aprendendo a vê-los sob cada roupagem mítica que os oculte.
Subversivo, talvez...tenho certeza que os cristãos e pagãos lendo isso estão igualmente horrorizados com a minha proposta (que nega a ambos os lados o vitimismo persecutório das Catacumbas e do Tempo das Fogueiras, o que já seria um grande progresso em ambas as facçôes) -- mas eu não vejo, para o Druida moderno vivendo numa civilização insana e autodestrutiva como a nossa, outro destino que não seja a subversão cultural, e é a esse destino que os convido, sob o signo de Jorge e Ascalon, reconciliados ainda que para sempre opostos.

(sim, esse é o nome esquecido do dragão nas lendas medievais...)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Noé



Acabei de assistir a recém-estreada versão da história de Noé, e muito embora esse não seja em absoluto um mito dos Celtas (embora os monges da Irlanda tenham tentado a todo custo criar uma conexão celta, declarando que o primeiro povo a chegar lá foi a tribo de Cessair, neta de Noé, pouco depois do dilúvio) a abordagem do diretor Darren Aronofsky (que também nos deu o belíssimo Fonte da Vida) entrelaçou no mito original temas tão relevantes ao nosso tempo que merecem comentário.
Para começar, o filme deixa completamente de lado o tom beato com que temas bíblicos costumam ser tratados -- a atmosfera é desavergonhadamente mítica, com direito a céus onde as estrelas brilham durante o dia, animais fantásticos que fazem parte da fauna local, um Matusalém, avô de Noé, que mais parece um Merlin antediluviano com seus chás visionários e bênçãos de fertilidade, e a revelação de que os humanos partilham seu jovem mundo (lembrem, aquela é a décima geração depois de Adão) com os gigantescos Guardiães, uma fusão do mito dos Nefilim do Gênesis com os Grigori do livro de Enoch, os anjos caídos que ensinaram as artes e ciências aos humanos -- só por isso tudo, o filme já mereceria ser visto por todos, mesmo pelos Pagãos mais abraãmicofóbicos...
Mas o motivo central do filme é o embate entre duas visões de mundo, simbolizadas pelas duas linhagens descendentes de Adão: os filhos de Caim, nascidos para explorar e devastar a Terra, construindo a ferro e fogo cidades por toda a parte, poluindo a água, destruindo florestas e matando animais para comer, e os filhos de Seth, vegetarianos, pacíficos quando não provocados, tentando viver em harmonia com o mundo à sua volta e seguir a vontade do seu Criador (que curiosamente nunca é chamado de Deus, e que só se manifesta em visões, não por vozes celestes).
Nessa versão, Noé não parece nada antropocêntrico -- após a visão do Dilúvio, ele está convencido de que a Arca se destina apenas aos "inocentes", ou seja, aos animais ("porque eles ainda vivem como nos tempos do Jardim"), e uma visita ao acampamento dos cainitas, onde ele testemunha horrores de todo tipo, só faz confirmar sua convicção de que toda a Humanidade deve se extinguir, e mesmo ele e sua família, quando as águas baixarem e os animais forem liberados no mundo purificado, não merecerão nada mais além de morrer sem descendência.
E essa visão do homem-como-incuravelmente-mau é uma que se encontra facilmente em foruns e redes sociais Pagãs, sobretudo quando alguma notícia sobre poluição, maus-tratos a animais, mudanças climáticas é postada -- um coro se ergue, cantando a perversidade sem cura do ser humano e desejando sua extinção imediata, pelo bem da pobre-Natureza-sofrida... e quem adere ao coro não percebe o quanto ele é o lado oposto do antropocentrismo que eles tanto abominam, ao colocar o ser humano em oposição à Natureza e, portanto, fora dela; porque extinguir rinocerontes ou leopardos é "mau" e extinguir os humanos é "bom"? Quem disse que somos especiais, para o bem ou o mal?
Como Noé vem a aprender, não é a espécie humana que merece a extinção, mas sim as diferentes civilizações humanas que vivem em desarmonia consigo mesmas, com as outras e com o mundo em que vivem, e que não precisariam perecer se estivessem dispostas a mudar para modos mais iluminados de ser: não é o homem, mas todo um modo de vida, que hoje está tentando destruir o mundo, e cabe a nós, Druidistas, e aos outros que partilham de nosso ideal de harmonia com o mundo, aprender a deixar esse modo de vida do lado de fora de nossas Arcas interiores, onde ele será lavado e dissolvido pelas mesmas águas da mudança que nos levarão a um mundo renovado.