quarta-feira, 18 de junho de 2014

Solstício em Newgrange

2100 aC
Brú na Boyne, Hibernia

Ana saiu do abrigo comunal em silêncio, enrolada em camadas de pele de raposa, só com os olhos de fora -- e mesmo assim o frio lá fora quase a fez voltar correndo para sua cama perto da lareira central...mas ela se forçou a sair e fechar a porta, e andou no frio mortal do que restava da Noite Longa, sabendo que sua família e tribo dormiam acalentados pelo calor do abrigo, pela comida e bebida, pelas danças e cânticos, e que ninguém acordaria cedo naquele dia cuja manhã já dava sinais de chegar, ninguém daria por sua falta por muito tempo, talvez por tempo bastante para ela realizar o que se havia proposto.
E foi pensando nisso que ela viu que, distraída, havia chegado à pedra grande e gravada com espirais que marcava a entrada do Monte Velho -- o lugar que já estava lá quando sua gente chegou das terras do Sul, ela com quase dois anos olhando do colo da mãe -- o lugar que as crianças temiam e que os velhos chamaram de sagrado, mesmo que nunca chegassem nem perto de sua sombra.
Mas ela queria um lugar só para ela, longe do aglomerado de calor fedido que era a sua tribo no Tempo Frio, e quando a idéia lhe veio ela não pôde resistir: e foi assim que Ana se esgueirou pela janela de pedra sobre a porta do Monte, há muito selada, entrando na caverna escura.
À fraca luz do amanhecer, ela viu ossos de pássaros e lebres, rochas soltas, e um corredor que se embrenhava na escuridão do Monte, e seguiu por ele apalpando a parede para se orientar.
E foi lá que o raio do Sol nascente a encontrou de surpresa, enchendo de luz a caverna e tornando tudo dourado à sua volta -- ela ficou ali, paralisada pela beleza daquela luz que parecia viva, e a voz a sobressaltou quando a ouviu ressoar na caverna:
"O que você faz aqui, e quem é você?"
Ana viu um menino de pé no meio da luz, parecendo ser da sua idade, e mesmo sem ver seu rosto claramente soube que ele era bonito.
"Eu pergunto o mesmo para você!" respondeu ela, que não tinha medo de gente grande ou pequena.
Ele riu um riso de criança, "esta é a minha casa, era do meu pai, ele me deu, eu dei para a minha mãe, eu venho aqui todo ano visitar ela"
Ela respondeu, "este é o Monte Velho, meu pai e minha mãe vivem do lado oposto daqui, eu vim aqui para ficar sozinha e pensar, então me deixe em paz!"
O menino riu e perguntou, "diga, o que é pensar?"
Ela o olhou com desprezo: "tem um olho dentro da cabeça que vê coisas que foram, que são, que podem ser; seu burro, ninguém lhe ensinou isso?"
Ele respondeu muito sério, "Sim, eu aprendi isso, só perguntei para ver se você sabia"
"Eu sei", respondeu Ana, "os velhos da tribo dizem que eu penso bem e que vou pensar melhor quando for mais velha"
"Para ver melhor", disse ele, "o olho dentro da cabeça precisa de mais luz, ele fica fechado sozinho na escuridão --"
"Como esta caverna no Monte Velho!" interrompeu ela, "que fica fechada no escuro..."
"Até a luz entrar", completou ele com uma risada, olhando para ela intensamente.
Sem saber como, Ana ficou em frente dele, cara a cara (e mesmo assim o rosto dele era ofuscado pela luz), e sentiu o toque de um beijo na testa, quente como o Sol no Tempo Quente...
E foi lá que a tribo de Ana a encontrou três dias depois, guiada pelos cães de caça, deitada num sono de quase-morte, do qual acordou com os olhos cegos para o mundo, mas com tamanha clareza de mente que os velhos da tribo a acolheram entre eles como se fosse uma anciã idosa e não uma menina de nove anos -- mas nisso, como em tantas coisas, estavam certos, porque aquela escapada na Noite Longa foi a última travessura da infância de Ana, que até morrer, e ter as cinzas espalhadas no sopé do Monte Velho, às vezes parecia ouvir um riso de menino quando a luz do Sol batia em seu rosto.

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domingo, 8 de junho de 2014

Círculos



A vasta obra de Edward Williams, mais conhecido pelo pseudônimo literário de Iolo Morganwg, ocupa uma posição ambivalente no pensamento druídico moderno: os grupos Mesodruídicos (os do Renascimento druídico do século XVII, de inspiração hermético-maçõnica) o veneram como o pioneiro redescobridor da doutrina dos antigos Druidas, revelada ao mundo no seu tratado monumental Barddas, enquanto os Neodruidas o denunciam como um forjador barato que criou tudo da própria imaginação, e os Reconstrucionistas Celtas sequer se dignam a emitir opinião a respeito dele.
Os estudiosos modernos da obra do Iolo chegaram à conclusão interessantíssima de que ele pode ter realmente topado com doutrinas e costumes autênticos preservados em bibliotecas ou guardados entre as famílias Galesas mais antigas, e a esse corpus obrigatoriamente fragmentário e incompleto ele não se furtou a acrescentar idéias e escritos de sua autoria -- o grande problema é que o texto final do Barddas foi tão bem costurado que não dá para saber o que é autêntico e o que veio dele...Philip Carr-Gomm, da OBOD, é da opinião (com a qual concordo) de que mesmo que Iolo tenha feito passar criações suas como se fossem antiguidades legítimas, ao escrevê-las ele estava agindo como um Druida antigo agiria, invocando a Inspiração do Awen e pondo-a no papel, e que talvez ele devesse ser olhado menos severamente pelos Druidas modernos e aceito como sendo, se não autêntico, pelo menos espiritualmente válido; quem quer qie já tenha lido, ou ouvido num rito público, a sua Oração Druídica, não tem como não sentir a força espiritual e a beleza artística presentes em cada linha dela (experimentem recitá-la ao acordar pela manhã, nem que seja só por uma semana, e vejam o que acontece!)
Um desses ensinamentos de "pedigree" incerto é o dos Círculos da Existência: numa visão reencarnacionista (para a qual não temos evidência nos textos da Irlanda, mais indicativos da metempsicose), Iolo fala da alma surgindo, em sua forma mais básica e rudimentar, do abismo de Annwn (que é o nome do Outro Mundo nos mitos Galeses), seguindo por ciclos de vidas sucessivas em todas as formas concebíveis no Abred, para culminar na sua forma mais perfeita no Gwynfyd -- para além disso, existe um Círculo ainda mais elevado, mas inacessível a todos os seres por suas condições extremas, onde apenas Deus (numa versão mais panteísta que personificada, a quem Iolo deu vários nomes e que grupos modernos chamam apenas de Incriado) existe, isolado e perfeito no Ceugant.
Se isso é um ensinamento tradicional dos Bardos de Gales sobre a situação da alma após a morte ou o resultado da meditação pessoal do Iolo sobre o tema, não sabemos -- essa questão da alma e sua trajetória pós-morte é complexa demais para este ensaio, terá que ficar para outra ocasião -- mas há algo de harmonioso e reconfortante no esquema dos Três Círculos que ressoa no espírito de muita gente e parece suficientemente plausível para fazer parte da crença de muita gente; para mim, não era algo particularmente relevante para a minha prática pessoal até há pouco, mas...
Mês passado, com alguns amigos da comunidade druídica, numa vigília à beira do fogo, já quase ao amanhecer a Inspiração me mostrou um possível símbolo para os Círculos quando olhei a faixa da Via Láctea acima de mim -- o espaço escuro e frio entre as galáxias é a imagem perfeita do abismo do Annwn, as galáxias são como ilhas no mar do espaço, e em seus braços em perpétua rotação sóis brilham sobre mundos como o nosso, onde vidas incontáveis seguem pelo Abred, ciclo após ciclo; o Centro Galáctico, radiante de luz e calor, o centro imóvel da Roda, representa o Gwynfyd, e oculto no meio de tanta luz um imenso buraco negro jaz no centro de tudo, onde nada feito de matéria ou energia pode entrar sem ser destruído, a perfeita imagem do Ceugant, onde o pensamento meramente humano cessa impotente diante do Mistério.
E então eu vi, e agora eu creio...
Da próxima vez que olharem o céu noturno, procurem a constelação de Escorpião e olhem para a ponta da sua cauda, onde estaria o ferrão -- façam isto, saibam que naquela direção, alguns milhares de anos-luz além,  o Centro da nossa galáxia jaz imóvel enquanto giramos à sua volta -- eu os desafio a, tendo lido isto, e olhado para onde apontei, não terem tido um arrepio espinha abaixo...

quinta-feira, 5 de junho de 2014

OBOD, 50


Neste final de semana, no solo sagrado de Glastonbury, a Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas vai comemorar 50 anos de existência,  trabalho, ativismo e educação, sendo atualmente a maior organização de inspiração druídica da Europa e do mundo.
Ross Nichols, o seu fundador, saiu da Ancient Order of Druids por discordar dos rumos que ela iria tomar sob seu novo Chefe Escolhido, que afetariam o ideal universalista e não-sectário que a caracterizava até então, o qual foi reforçado na fundação da OBOD e permanece até hoje como sua marca registrada -- pessoas de todas as fés, ou de nenhuma delas, são aceitas na Ordem sem precisar abandonar nenhuma delas, porque a OBOD entende o druidismo (ou "druidaria", como traduziram o termo "druidry", contraposto a "druidism") como sendo uma filosofia de vida, não necessariamente oposta às crenças dos que a buscam, mas procurando complementá-las com a visão da espiritualidade do mundo natural e de tudo que nele há. A divisão da Ordem nas três categorias clássicas de Bardos, Ovates e Druidas, bem como a insistência em realizar as  8 grandes cerimônias da Roda do Ano como sendo abertas ao público leigo, são outras de suas contribuições para a Ordem como é hoje.
O passamento inesperado de Nichols em 1975 deixou a Ordem numa situação confusa, sem uma linha clara de sucessão ou testamento que a orientasse, e assim a OBOD foi "fechada no mundo aparente", para todos os efeitos deixando de existir; foi só anos depois, em 1988, que Philip Carr-Gomm, discípulo de Nuinn (o apelido de Nichols entre amigos), recebeu a Inspiração dele para reativar a Ordem e, por meio de um curso à distância, divulgá-la para além da Inglaterra -- hoje a OBOD está representada em mais de 50 países e sete idiomas, incluindo o português em Portugal, e toda essa comunidade está comemorando o cinquentenário da Ordem desde o começo do ano em eventos locais e extra-oficiais, e divulgando estes eventos através da maciça presença de seus membros na Internet.
Poeta, viajante, pintor, naturista, pacifista, vegetariano, Druida -- Nichols não pareceria deslocado nos dias atuais, e certamente aprovaria (e participaria) do ativismo ecológico abraçado pela OBOD na última década, em especial nos protestos contra as empresas petrolíferas e seus planos de perfurar solo inglês, urbano e florestal, numa agressão sem precedentes ao meio ambiente (cuja data comemorativa, por sinal, é hoje).
Nós, seguidores do Druidismo do Brasil e do mundo, honramos Nuinn e seu legado, e damos os parabéns à Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas, em seus primeiros de muitos 50 anos...