segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 8: Aspectos e Variações

Esta semana, vamos olhar com mais detalhes os três aspectos de Endovélico já esboçados nas semanas anteriores...
Para começar com o Oráculo, notem que ele foi sincretizado com Esculápio -- e não com Apolo, como seria o procedimento-padrão da interpretatio romana para uma Divindade estrangeira associada à cura-- e a razão disto é simples: ambos são Deuses da cura, e ambos também são Divindades oraculares, mas a diferença crucial entre os dois é que o oráculo de Apolo é do tipo "mediúnico", onde a Pitonisa em transe fala pelo deus, enquanto o de Esculápio é "oniromãntico", ou seja, os devotos sonham com o deus ao dormir em seu santuário, e ao acordar interpretam seus sonhos sozinhos ou com ajuda dos sacerdotes; no segundo caso o contato do fiel com a Divindade é direto, sem intermediários, e depende de um esforço ativo do consulente em se preparar (via regimes austeros, orações e meditação) para incubar o estado onírico onde o deus pode se aproximar e comunicar seus oráculos; como já vimos, J. Leite Vasconcelos considerou que os remanescentes do santuário de Rocha da Mina sugerem que uma das cãmaras poderia ser onde os devotos praticavam a incubação de sonhos, pela arquitetura similar à dos santuários de Asclépio em Epidauro e de Nodens em Lydney Park. A imagem do devoto, deitado aos pés da imagem do deus, cabeça a nível do chão como que tentando ouvir a voz das profundezas, logo traz à mente o EX IMPERATO AVERNO que comentamos semana passada, a mensagem que emanou das profundezas e alcançou a mente do devoto, suspensa entre a vigília e o sono profundo, em forma de sonho.
O Curador, como vimos, está estreitamente associado ao Oráculo, desde que a principal razão pela qual se buscava sua orientação era saber o que fazer para se curar -- minha intuição, no entanto, me diz que no caso de Endovélico aconteceu o mesmo que com Asclépio (a forma Grega de Esculápio): os ex-votos mais antigos em seu santuário de Epidauro descrevem o deus aparecendo durante o sonho do fiel, que desperta já plenamente curado, enquanto numa etapa posterior o deus orienta em sonho o fiel sobre como se curar sozinho, e na fase final o sonho se torna uma receita densamente simbólica que os sacerdotes interpretavam para aí prescrever um esquema terapêutico ao fiel; um lento processo de afastamento da Divindade ao longo de séculos, talvez?
O Guia/Senhor dos Mortos é mais obscuro, como as Divindades ctônicas tendem a ser (e é digno de nota que a interpretatio não cogitou associá-lo com o Hermes Cthonios (Guia das Almas) ou Hades/Plutão (Senhor dos Mortos)) -- mas, lendo o mito esculapiano, vemos que a ele foi pedido que ressuscitasse os mortos, o que ele fez (em algumas versões por dinheiro, em outras simplesmente porque podia), ao que Hades protesta pela violação de seus domínios e Zeus, em resposta, fulmina Asclépio com um raio: é difícil ler isso e não lembrar do mito Irlandês de Diancecht e seu filho Miach, que em certo ponto "revive" a mão morte e decepada do rei Nuada, sendo ferido de morte por seu pai e se curando vezes seguidas dos golpes, até ser finalmente morto e enterrado -- em ambos os mitos Irlandês e Grego (e certamente no Celtibérico) o tema da tentação do Curador para violar as leis naturais e negar à Morte um lugar na ordem das coisas está bem atestado, e voltaremos a ele em semanas posteriores.
O que há em comum entre os três aspectos do deus é o que os antropólogos chamam de liminaridade, ou seja, a mediação entre estados, condições ou reinos opostos -- o Oráculo do Sonho entre vigília e sono profundo, o Curador da Doença entre saúde e morte, e o Guia das Almas entre este mundo e o Outro-Mundo -- e é bom notar que cada aspecto é tanto solar como ctônico, em graus diferentes, e que há uma certa interpenetração de papéis entre os três: foi por isto que escolhi a imagem acima para esta semana, onde cada cor/aspecto traz em si uma segunda cor e avança em direção a uma terceira, formando um todo fluido e complexo que, para mim, simboliza muito precisamente a natureza de Endovélico.


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