quinta-feira, 3 de julho de 2014

Viriato


Como os Gauleses tiveram Vercingetorix, e os Britânicos a rainha Boudicca, também os povos da Lusitânia tiveram um herói, um libertador, um mártir a ser lembrado – Viriato.

Pouco conhecido fora de Portugal, um virtual ninguém mesmo para os povos de língua e cultura portuguesas, é ele e a sua história, tão similar à dos heróis Celtas acima citados, o tema deste artigo.

Ainda hoje em Portugal pode-se perguntar a alguém quem foi Viriato, e esse alguém, sobretudo se for mais idoso, vai recitar a frase aprendida na escola primária: “era Viriato pastor nos montes Hermínios...”; mas, como costuma ocorrer, mito e verdade aqui se misturam. Embora a tradição popular sempre o tenha descrito como pastor de cabras nos montes Hermínios (a atual Serra da Estrela), é um consenso entre os historiadores modernos que Viriato seria do Sul (segundo J. Leite de Vasconcelos, do Alentejo; para Jorge Alarcão, talvez baseado na crônica romana de Diodoro, do litoral ao norte da foz do Tejo). Mesmo seu nome verdadeiro é desconhecido – “Viriato” significa “portador das vírias”, ou seja, dos grandes braceletes de ouro usados nos braços ou, no caso dos modelos maiores, nas coxas, e que seriam, talvez, a insígnia dos líderes dos bandos guerreiros.

Para as tribos Lusitanas, o direito de herança era patrilinear e exclusivo do primogênito, restando a seus irmãos sujeitarem-se a trabalhar para ele nas terras paternas ou unirem-se a outros deserdados em pequenos bandos especializados em furtos e saques nas comunidades vizinhas: não seria algo particularmente desonroso para os envolvidos, apesar de causar transtornos vários às vítimas dos saques, e não é demais ver aí, na tradição dos bandos de salteadores armados, a origem e o treinamento de batalha inicial que Viriato, filho de Comínio, teria tido.

E essa seria a sua vida, seguida de uma morte comum e do esquecimento completo, se não tivesse a águia de Roma lançado sua sombra sobre a Ibéria.

Os Romanos chegaram à Peninisula Ibérica inicialmente sem outra intenção que não a de fazer frente aos Fenícios/Cartagineses, já ali estabelecidos há séculos, tendo várias colônias no Sul (o Cineticum, atual Algarve) pacificamente mantendo rotas comerciais por todo o Mediterrâneo, pelas quais fluíam o ouro, prata e estanho ibéricos em abundância; após a derrota de Cartago e a dominação Romana sobre as cidades fenícias do Sul, os vencedores, agora donos do mundo conhecido, aproveitaram-se da riqueza assim disponível para reivindicar o domínio sobre toda a Ibéria.

Os vários pretores enviados por Roma fundamentaram sua conquista com sangue e traição: Sérvio Sulpício Galba, derrotado pelos Lusitanos em 151 aC, reverte o jogo e os derrota, mas, ao oferecer uma trégua honrosa aos vencidos, tão logo estes depuseram suas armas, ordenou o massacre de todos – poucos escaparam com vida, Viriato entre eles, e a notícia do ocorrido estarreceu a toda a Ibéria, a já conquistada e a ainda livre, e a revolta anti-Romana só fez crescer com o episódio.

Três anos depois, em 147 aC, o novo pretor, Caio Vetílio, enfrenta uma horda de 10.000 Lusitanos que haviam invadido a Turdetânia (sul da Espanha, perto de Gibraltar) e consegue por astúcia atraí-los para uma armadilha, encurralando-os numa fortificação abandonada, sem fontes de água ou estoque de alimentos, condenados a optar entre a morte por inanição ou a rendição-com-morte-ou escravidão.

Mas Viriato, que participou da invasão com o seu bando, e já tinha algum renome entre os Lusitanos pela sua bravura e senso estratégico apurado, não perdeu a calma. Esperou que o desespero lentamente tomasse conta dos outros bandos guerreiros ali presos com ele, pois só então estariam prontos a ouvir e acatar seu conselho – e falou.

Lembrou a todos ali presentes da traição de Galba, e de como destino igual lhes seria dado se se submetessem aos Romanos e se rendessem (“acaso Roma já respeitou alguma vez a palavra dada?”); apontou a ambição imperial de Roma como sendo inesgotável, e que não cessaria enquanto toda a Ibéria não fosse conquistada; e declarou que sabia perfeitamente bem como tirá-los do cerco para a liberdade, mas que para isso deveria ser ele, Viriato, a comandar todos os bandos e tribos em batalha, sem questionamentos.

A aclamação foi estrondosa. Viriato foi, ali, eleito chefe do que antes era uma horda indisciplinada, e agora se tornava o exército dos Lusitanos.

No dia seguinte, com ataques simultâneos em quatro pontos diferentes, rompeu o cerco Romano e fugiu com sua tropa, não sem antes abater e saquear os vencidos; de lá, derrotou Vetílio em Tríbola, e os seus sucessores, Caio Pláucio, Caio Unimano e Caio Nigídio, tiveram a mesma sorte.

A águia de Roma, alarmada com o rumo dos eventos, enviou para a Ibéria, agora não um pretor, meramente administrativo, mas um cônsul, Quinto Fábio Máximo Emiliano, que vence Viriato e o força a se retirar para Baikor (atual Bailén, Espanha) em 144 aC., mas de lá ele consegue incitar a Hispânia Citerior (ao sul do Ebro, leste da Espanha) à revolta, dando início à Guerra Numantina em 143 aC. e derrotando Quinto Pompeio e Quíncio, junto com Q. Emiliano.

O novo cônsul, Quinto Fábio Máximo Serviano, a muito custo consegue derrotar Viriato e forçar a sua retirada em 141 aC, avançando para o Cineticum e de lá subindo à Mesopotâmia-entre-Tagus-e-Anas (atual Alentejo, Portugal), sendo detido por Cúrio e Apuleio, chefes guerreiros aliados de Viriato, e retirando-se derrotado para a Bética (região do rio Guadalquivir, Córdova, Espanha), onde Viriato o derrota no cerco de Erisane, em 140 aC, e força a assinatura de um tratado de paz, contando com o cansaço e o medo dos Romanos para assegurar a paz com eles; Viriato entra para o seleto grupo dos Amici Populi Romani (Amigos do Povo Romano), dado apenas aos reis aliados (embora Viriato nunca tenha se autoproclamado rei).

Porém, o Senado quebra o tratado, como o próprio Viriato houvera previsto anteriormente, e Quinto Servílio Cipião é enviado à frente de novas tropas Romanas; Viriato tenta um acordo novo com Popílio Lenate, o governador da Hispânia Citerior, mas três guerreiros de seu próprio exército, Audax, Ditalco e Minuro, são por Lenate subornados para, na noite seguinte, degolarem Viriato em sua tenda.

Consumado o fato, após o pranto de todos os bandos agora unidos como um, foram concedidas a Viriato as honras de um rei tribal caído em batalha, mesmo que ele jamais tivesse reivindicado o título – jogos fúnebres, sacrifícios de bois, cabras, e mesmo de prisioneiros Romanos, libações de cerveja e vinho precederam o momento em que seu corpo, lavado e adornado com suas melhores roupas (que nunca usava, pois era conhecido sem temperamento avesso a vaidades e exibição) e armas, e as vírias que lhe deram o nome, foi posto na pira funerária sob o clamor dos Lusitanos, que davam seu adeus ao seu maior chefe e última esperança de liberdade para a Ibéria.

Os cronistas da época preservaram fragmentos de histórias e declarações que compõem um retrato fragmentado, mas coerente, de Viriato: homem simples, acostumado aos rigores do campo e da batalha, austero no comer e no beber, tomando para si nos saques apenas algo de que precisasse, como armas para substituir as danificadas, eloqüente e hábil no falar, venerado até a idolatria pelo seu bando de guerreiros prontos a darem a vida por ele, estrategista experiente, intransigente em relação ao que achasse correto.

Casou-se com Tangina, filha de Astolpas, rico proprietário de terras às margens do Tejo, que incialmente não viu isto com bons olhos pela falta de bens do noivo, bem como por suas relações comerciais e políticas com os Romanos (na festa do casamento, ao saber que havia Romanos presentes ao evento, Viriato ordenou que seus homens mantivessem-se armados e com os cavalos preparados para partir, e diante do altar como quem está de partida, recebeu uma noiva igualmente preparada, que não se fez de rogada e subiu na garupa do cavalo de Viriato sem olhar para o pai); mais tarde, Astolpas renegou as alianças com Roma e se uniu ao exército de Viriato (pouco antes da derrota final de Viriato, Popílio Lenate exigiu que Astolpas lhe fosse entregue como condição para o novo tratado de paz, mas Astolpas cometeu suicídio para não constranger o genro, agora aceito como filho).

Os fíli da Irlanda diziam: “O que é o Santuário que preserva? É a memória, e o que nela está preservado”.

Nesse espírito, no espírito Celta de preservar a memória dos Heróis, dedico este artigo aos Lusitanos do passado, na intenção de chamar quem o ler para participar na preservação da memória de Viriato e seus feitos, como exemplo de virtude para as gerações presentes e futuras.

Que Endovélico e as Divindades da Lusitânia ouçam estas palavras!


São Paulo de Piratininga,
14o. do Lughnasad, 2006

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