Muita gente vai atrás das religiões pagãs atraída pelo que parece um caminho de liberdade irrestrita, diferentemente dos dogmas e mandamentos das crenças mais convencionais - a frase da Wicca "se não causar mal a ninguém, faça o que quiser" é o irresistível canto da sereia para essas pessoas - mas já vimos em
postagens anteriores que há códigos éticos muito claros em todas essas religiões, incluindo o Druidismo, não existe isso de vale-tudo irrestrito; depois do choque que essa revelação traz aos mais deslumbrados, mesmo aqueles que conseguem absorvê-la sem abandonar decepcionados o caminho acabam perplexos diante do mistério dos geasa.
Geasa (singular
geis) é o termo Irlandês para certas compulsões ritualmente impostas, seja na forma de atos proibidos ou obrigatórios, e que devem ser seguidas à risca sob pena de ruína pessoal ou catástrofe: o exemplo clássico é o de Cuchulainn, o herói do Ulster, que está sob os geasa de não poder comer carne de cão (o seu animal tutelar) e ter de aceitar qualquer comida oferecida por uma mulher, e tem seu destino selado quando três velhas no caminho oferecem a ele cozido de lontra (que em Irlandês é literalmente o "cão das águas"), ou seja, ele é forçado a escolher qual geis violar para cumprir o outro; guerreiros como ele podem ter dois ou mais geasa, mas os reis estão sob dúzias deles ao mesmo tempo, e assim a probabilidade de conflito insolúvel aumenta exponencialmente. Mas então, dirão vocês, qual é o propósito disso, senão uma armadilha que vai arruinar sua vítima mais cedo ou mais tarde?
Maria Nazareth Alvim Barros, autora de
Uma Luz sobre Avallon, considera que os geasa servem como mecanismos de controle social sobre aqueles indivíduos ou classes sociais mais poderosos (reis) ou potencialmente perigosos (guerreiros), restringindo seu poder para o bem da tribo, mas logo à frente ela diz que os Druidas não estão sujeitos a nenhum geis - mas se eles são a classe suprema da sociedade Celta, se nem mesmo o rei pode falar em assembléia antes que o Druida se pronuncie, não deveriam eles ser restringidos por centenas de geasa, ou talvez um ou dois particularmente restritivos, segundo este raciocínio? Nenhum relato descreve algum Druida sob geasa, é verdade, mas ausência de evidência é o mesmo que evidência de ausência? Minha teoria é que os Druidas tem um ou mais geasa, sim, mas diferentemente de guerreiros ou reis tais injunções são mantidas em segredo absoluto, e por isso não foram registradas nas histórias: tanto os geasa druídicos quanto o sigilo sobre os mesmos tem um motivo de ser, e é isso que vamos tentar descobrir aqui.
Primeiro, como uma pessoa adquire geasa? A maioria aparentemente vem desde o nascimento, e é revelada ao indivíduo por divinação druídica, possivelmente fazendo parte do
dán desse indivíduo e até mesmo sendo essencial para o seu cumprimento; outros são impostos por Druidas, Divindades, Ancestrais ou Espíritos, seja como maldições ou desafios a serem superados; outros, enfim, viriam com a definição social do indivíduo, como o ingresso num bando guerreiro ou a coroação do rei. Todos estes casos tem exemplos atestados nas histórias, mas eu quero postular para os Druidas a assunção voluntária de geasa, como parte da sua iniciação ou relativos a trabalhos específicos (e neste caso talvez eles seriam temporários, terminando com o trabalho cumprido).
Segundo, qual é o mecanismo dos geasa, e do possível segredo sobre eles? Aqui eu vou apelar para duas fontes, uma ficcional, outra mágica, que me parecem relevantes e plausíveis.
Marion Zimmer Bradley (sim, a das
Brumas de Avalon) era uma autora de fantasia extremamente prolífica, e em um de seus livros,
Lythande (existe em português, mas fora de catálogo há anos), ela fala do Templo da Estrela Azul, uma ordem/escola de magos onde na iniciação final, quando o aprendiz finalmente recebe a marca da Estrela Azul na testa e o poder a ela vinculado, esse poder é selado por um segredo, conhecido apenas pelo Mago e pelo Mestre do Templo, e que ninguém mais pode conhecer: se alguém descobrir e falar esse segredo em voz alta, o Mago perde permanentemente seu poder, e segundo Bradley é a tensão psíquica do segredo guardado que mantém o poder do Mago acumulado e selado dentro dele, como o grão de areia na ostra que forma a pérola (procurem o livro, é muito legal!)
Ian Corrigan, Druida da
ADF, um dos mais originais e criativos magos do nosso tempo, ao falar sobre sacrifícios/oferendas
neste podcast, teorizando sobre o mecanismo implicado no ato da oferenda, menciona que "(...)
os Espíritos parecem totalmente fascinados quando nos privamos de algo (...)" - como seres imateriais que são, muitos deles jamais tendo encarnado no mundo material, eles não concebem que um ser material pode carecer, voluntária ou involuntariamente, de comida, abrigo, ou seja lá o que for, porque no Outro-Mundo o desejo é satisfeito assim que surge; o que valeria na oferenda, assim, não seria a coisa ofertada em si mesma ou a emoção devocional do presentear, mas o ato de se privar voluntariamente de algo de valor - segundo Corrigan, isso é que atrairia a atenção e a curiosidade dos Espíritos, que compensariam essa carência voluntariamente assumida com bênçãos espirituais e materiais; quanto mais "sacrifício" houvesse na oferenda, maior seria o poder investido no ato, e mais garantida seria a resposta ao mesmo.
Juntando ambos os postulados, o que obtemos? O geis é uma privação mais ou menos severa da liberdade do indivíduo, e isso por si só já geraria uma resposta favorável do Outro-Mundo, que retiraria sua bênção com a violação do geis e a cessação da privação; se esse geis estiver sob sigilo, a tensão psíquica ampliaria o poder investido e a resposta ao mesmo.
Na prática, como usar essa teoria? Não é sensato fazer votos a torto e a direito sem pensar muito bem, e por muito tempo, se isso é adequado ou não - muita meditação, aconselhamento com gente sábia (incluindo divinação extensiva sobre o alcance, riscos e adequação do ato) são preparações recomendadas antes de assumir um geis (e eu aconselharia fazer os primeiros geasa de curta duração, talvez uma lunação no máximo, e só um de cada vez, para evitar conflitos); escreva no seu diário (como assim, você AINDA não tem um???) cuidadosamente o que você deseja, qual é o geis (positivo ou negativo) ao qual você vai se submeter, e o período exato da obrigação, faça oferendas às entidades guardiãs, ore às
três Almas para estarem alinhadas neste propósito, e vá prestando muita atenção no período a eventos/presságios do dia-a-dia; se tudo correr bem, e o geis tiver sido mantido sem falhas, ao fim do período agradeça o auxílio obtido e declare oficialmente a obrigação encerrada. Se a Inspiração apontar, depois de alguns geasa temporários, que é hora de assumir um geis vitalício, confirme por divinação/meditação/aconselhamento a veracidade disso, faça o voto - e se prepare, porque com o aumento do poder interior decorrente do geas e do sigilo, novas responsabilidades surgirão no seu caminho, como partes do seu
dán, e você terá que estar à altura delas...
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