Ela despertou aos pés do cipreste na escuridão que precede a aurora, e por um tempo não sabia quem era ou onde estava - sonhos vagos, sensações de perda, procura e esperança, eram tudo o que ela lembrava.
Levantou-se, notando pela primeira vez os muitos véus que a cobriam, como os fios do casulo que envolvem a crisálida, bem como o fruto em sua mão (sem que tivesse vindo de nenhuma das árvores que ali cresciam com o cipreste prateado), e caminhou pela trilha aberta à sua frente, de modo hesitante no começo e com passos cada vez mais seguros a cada instante.
Ouviu vozes - humana, animal, Outra - vindas de algum ponto à sua frente, que na luz crescente do amanhecer parecia um espaço aberto entre as árvores, e avançou com um pressentimento súbito.
Viu a clareira perfeitamente circular no coração da floresta, viu as muitas trilhas que convergiam para a pedra cinzenta no centro do círculo, viu as manchas escuras que a recobriam e não precisou adivinhar sua natureza, porque o
combate entre o Javali e o Senhor Negro, que ali transcorria, chegava ao auge com o passo estudadamente em falso da besta, que abriu o flanco para ser transpassada pela lança do Caçador, que a retirou da ferida e recuou, dando espaço para o Javali ferido se arrastar até a pedra e lá verter a maior parte do sangue.
O sacrifício está feito, disse o Senhor Negro numa voz inesperadamente triste.
E então ela se lembrou de quem era, e se lembrando ela O reconheceu, e no reconhecimento Ela despertou para a verdade daquele dia e ato; caminhou até o centro, estendendo a mão velada e ofertando o fruto a Ele, que a olhou longamente antes de prová-lo.
Quem de Meu fruto comer, ainda que morto, viverá, disse ela.
Não tinha comido metade quando o negror de Sua face e manto acendeu-se num fogo radiante e vivo, enquanto punha a outra metade entre as presas do Javali caído; em instantes ele se levantou, o pêlo negro e vermelho de sangue tornado como ouro, fez uma reverência a Eles, que montaram em seu dorso e seguiram juntos para o horizonte oriental, de onde a Luz do Sol traria a Vida renovada na Primavera.
Porque é esse sacrifício recorrente, Deus e Fera, desde o início dos tempos, que mantém a Roda girando; é o sangue que impulsiona cada volta, e assim será para sempre.
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