sábado, 14 de junho de 2025

Ategina, Semana 20: Arte Evocativa

Esta imagem simultaneamente celestial e ctônica, criação de Javier Barjollo, diz mais da Senhora do que mil palavras poderiam...

domingo, 8 de junho de 2025

Ategina, Semana 19: Qualidades

Ategina, como vimos há algumas semanas atrás, é aquela-que-vai-sem-olhar-para-trás, e nada pode dissuadi-la de seu propósito inabalável - seja buscar seu amado sem medir riscos, seja ir em socorro dos devotos que A invocam, ela é tão merecedora do epíteto "prestativíssima" quanto seu consorte divino
...mas vocês estão se perguntando, que raios essa imagem do Budismo tibetano tem a ver com uma Deusa lusitano-celtibérica?
Pois então, esta é a Tara Verde (ela apresenta muitas cores e atributos, está é só uma delas), a Salvadora, aquela que remove obstáculos no caminho da iluminação de seus devotos.
Vejam que, ao invés de estar sentada na postura do lótus, como tantas outras deidades budistas, ela é retratada com a perna direita avançando para a frente: esse gesto, na simbologia do Vajrayana, representa sua perene disposição em se levantar de seu trono de lótus e ir em auxílio de todos os seres - agora vocês entendem porque eu escolhi essa imagem? Porque eu não lembrei dela ao falar dos outros panteões, esta ficou disponível para que hoje eu pudesse falar da Compassiva, da Auxiliadora, da Sempre Prestativa com uma imagem que vale por mil palavras.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Ategina, Semana 18: Gênero e Sexualidade

Quando analisamos o culto de Endovélico anteriormente, consideramos a questão das suas 72 inscrições atestadas, com alta representação feminina (33% de devotas), a possível similaridade com o templo de Asclépio em Epidauro e seus ex-votos de órgãos genitais curados pelo Deus, e a visão romana (estereotipada?) da Ibéria como o "centro sexual" do Mediterrâneo.
Para Ategina não dispomos dos mesmos recursos, porque pouquíssimas inscrições, seja nos altares ou nas placas de defixio, nomeiam quem as inscreveu, e as ainda mais raras solicitações de cura não estão reunidas num inexistente santuário de cura sob a regência Dela.
Podemos, é claro, supor que a fertilidade do solo e das colheitas que Ela proporciona desse ensejo a quem buscasse ajuda nas manifestações mais "carnais" dessa fertilidade (e mesmo nas questões não-reprodutivas do sexo), mas sem evidências atestadas disso nas inscrições que temos.
E é aí que adentramos território desconhecido, guiados pela bruxuleante luz da UPG.
Mencionei de passagem, quando vimos a Cabra dentre os símbolos de Ategina, a hipotética relação Dela com a famigerada Oração da Cabra Preta, do clássico Livro de São Cipriano (mas que aparentemente se originou no Catimbó do Nordeste por volta de 1940, vejam só) e eis que um trecho dela diz:

(...assim como trinco fecha e trinco abre, quero o coração dessa(e) desgraçada(o), que não tenha mais sossego enquanto não for minha (meu), que ela(e) fique cheia(o) de coceira para não gozar nem ser feliz com outro(a) homem (mulher) que não seja eu...)

A força mítica e mágica dessa oração é evidente a quem a leia -- mas devemos lembrar que não há nenhuma evidência que confirme a OdCP como uma relíquia sobrevivente do culto original a Ategina.
Podemos, sim, usar esse conjuro em nome Dela no seu aspecto ctônico (ou a outra versão, que tem usos mais gerais que o da amarração), mas sem inventar uma origem arcaica transmitida da boca ao ouvido ao longo dos séculos, sem falsear a verdade em nome do glamour mágico, pois essa é uma de inúmeras situações onde a força do que é Válido triunfa sobre a falsa necessidade do Autêntico.
Bons conjuros, pessoal
(e lembrando que semana que vem é o Dia dos Namorados)

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Ategina, Semana 17: Relações com Outros Panteões



Esta é a semana das similaridades, semelhanças e "coincidências", os muitos modos pelos quais as Divindades ecoam e reverberam umas às outras.
Já vimos os muitos traços em comum entre Ategina e Prosérpina/Perséfone nas semanas anteriores, devidamente atestados pela interpretatio romana, e mencionei de passagem o mito da descida de Inanna ao Reino dos Mortos sumeriano em busca de seu consorte Dumuzi e das provações pelas quais Ela passou até ascender triunfante de Sua jornada.
Eis que Dumuzi, em algumas versões, foi morto caçando um javali, similarmente não apenas a Endovélico mas também ao Adônis grego, pranteado por Afrodite (mas aqui, ao invés de ir atrás dele no Hades, a Deusa resignada cria uma nova flor com o sangue derramado sobre o solo, um renascimento mais simbólico que literal).
E me ocorre pensar na clássica balada escocesa de Tam Lin, onde ele é prisioneiro do Povo das Fadas e a jovem Janet precisa cumprir uma série de desafios para, no fim, conseguir resgatá-lo.
E também me veio o mito de Psique, que cumpriu outra série de tarefas impossíveis, incluindo descer ao Hades (não para resgatar Eros, que não estava lá, mas sim para levar um pouco da beleza de Perséfone para Afrodite) para se reencontrar com seu amado.
E se alguém tiver outra sugestão, agradeço.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Ategina, Semana 16: Valores do Panteão

Como já vimos, não existiu um panteão unificado das tribos celtibéricas/lusitanas, e como mencionei em outra ocasião, as culturas pagãs tendiam a ver a ética como sendo algo encorajado pelas Divindades, mas de criação puramente humana -- assim sendo, penso que uma boa olhada no povo que cultuava Ategina pode nos ajudar a definir os seus valores morais para assim responder a questão: de que modo Ela reflete os valores éticos da cultura de seus devotos?
Os cronistas romanos descreveram os Lusitanos como "um povo que não se governa nem se deixa governar", independentes mas indisciplinados, como os Celtas de todas as partes da Europa sempre foram, razão pela qual o Javali foi subjugado pela Águia -- um herói autocontrolado e estratégico como Viriato é a exceção que confirma a regra, e mesmo ele precisou esperar que seus companheiros sitiados na Turdetânia desesperassem, pois só assim se submeteriam ao seu comando sem discutir.
Um povo frugal e austero, profundamente religioso, dormindo no chão sobre seus mantos negros, comendo pão de bolota de carvalho e bebendo água ou cerveja de trigo, saindo da floresta em ataques-relâmpago e voltando velozmente a ela, ferozes e indomados como javalis selvagens: fica evidente a admiração relutante dos cronistas por essas virtudes rústicas, que comparadas aos modos decadentes de Roma pareciam ainda mais admiráveis e dignas de louvor.
Da outra vez eu comparei Endovélico a Viriato, e assim não seria estranho examinarmos sua consorte Tangina em busca de semelhanças com nossa Deusa.
Tangina, filha do rico e nobre Astolpas, contra tudo e todos declarou que o amor que aquele bandoleiro sem nome, agora convertido em líder da revolta dos Lusitanos, tinha por ela era plenamente correspondido, apesar da ambivalente aprovação de seu pai, dividido entre o patriotismo e os vínculos comerciais com os Romanos - os cronistas dizem que, ao saber que seu sogro havia convidado gente de Roma para a festa de casamento, Viriato deu ordens para proceder diretamente ao rito nupcial, sem brindes ou festejos preliminares, e no altar encontrou Tangina usando um manto de viagem sobre o vestido nupcial, plenamente de acordo com seu amado, e após a bênção final ela montou no cavalo de seu agora marido sem olhar para o pai uma única vez.
E acho que esta qualidade, a decisão de ir-sem-olhar-para-trás, é um traço descritivo de Ategina: quando o Javali leva Endovélico ao Outro-Mundo, ela o segue sem pensar duas vezes ou temer o que encontrará no caminho, e essa coragem amorosa é recompensada com o trono de Rainha dos Mortos ao lado do Senhor Muito-Negro.
Ela é também a Mãe que tudo dá a Seus filhos, seja aos que rezam pela colheita bem sucedida, seja aos que chamam Seu nome em defixiones de maldição (lembrando que a maioria dos povos antigos não tinha muitos pruridos de se entregar a práticas tããão "negativas"), sempre pronta a atender os que A chamam em perfeita devoção. 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Ategina, Semana 15: Aspectos Mundanos

Um ponto presente nas fés pagãs como um todo é a crença na imanência divina, ou seja, na presença ativa das Divindades no mundo, diferente da visão monoteísta de um deus transcendente habitando um plano superior e vendo o mundo do lado de fora; os Deuses antigos habitam tanto o mundo natural e seus sempre variados fenõmenos quanto as culturas humanas em suas inúmeras manifestações.
No caso de Ategina, está claro que ela nunca está longe daqui, nem mesmo quando desce e assume a face da Senhora do Reino dos Mortos -- mas ela pode ser contatada sem ser por meio das devoções em seus altares domésticos? Qual é o aspecto mundano da sua presença?
Em nossa sociedade, a face da Senhora da Colheita é a mais óbvia, pela igualmente óbvia dependência que a humanidade tem da Terra e seus frutos, e esse é um aspecto cuja celebração é muito acessível, seja para quem planta algo num vaso em casa e comemora cada florada e colheita por mais modesta que pareça, seja nas muitas festas da colheita em várias cidades do Brasil, muitas delas próximas o bastante para justificar uma visita especial e uma celebração secreta em nome Dela.
Quanto à Rainha dos Mortos, já vimos que esse é um tema evitado como a peste pela civilização moderna, que gostaria de viver sem a iminente sombra da Morte e vai a extremos para evitar sequer a lembrança dela, então isso, ao que parece, é a tarefa das gerações vindouras.
Agora que viram como é fácil encontrar os Deuses, vão procurar por aí e vejam a quem encontram no caminho...

terça-feira, 6 de maio de 2025

Pecadores

(SPOILERS à frente, NÃO digam que eu não avisei)
Irmãos gêmeos voltam à sua cidade natal, após uma vida de crimes, aventuras, guerra e paz, para recomeçar suas vidas: um tema bastante explorado nas artes em geral e no cinema em particular.
Mas, e se os irmãos forem negros, e a cidade natal for no sul dos EUA, nos anos 30, em território da Ku Klux Klan?
E se, além disso, eles e seus amigos e familiares forem atacados por um bando de vampiros errantes e famintos?
E se tudo isso tiver sido desencadeado por uma noite de puro blues, executado por um músico tão poderoso que, naquela noite, abriu as portas entre os mundos e atraiu o que não devia?
Esse é o contexto de Pecadores, o novo filme de Ryan Coogler, e estes são os temas que vamos examinar mais de perto.
O diretor já tem um currículo sólido em falar dos negros e da opressão a que são sujeitos há séculos, e este filme não é exceção: a comunidade da cidade sofre violências de vários tipos, e a casa de blues que os irmãos abrem é um escape, uma libertação das amarras do cotidiano, e por isso mesmo fadada ao fracasso.
Mas naquela que seria a primeira e última noite da casa, na mais incrível cena do filme, a apresentação de Sammie como que rompe não só os grilhões invisíveis dos clientes, mas as próprias barreiras entre tempos, lugares e mundos.
E isso atrai um visitante especial: Remmick, imigrante irlandês e mestre vampiro, que diz ter sido chamado pela música de Sammie para incluí-lo no seu grupo de desmortos errantes, para que seu dom os ajude a refazer o mundo à sua imagem -- sem muitas palavras, o filme lembra que os irlandeses também foram um povo oprimido na Irlanda e marginalizado nos EUA, e deixa claro que a sede de Remmick é por vingança mais que por sangue.
Numa curiosíssima inversão, o tradicional clichê do blueseiro na encruzilhada buscando a música do Diabo dá lugar ao Diabo buscando a música do blueseiro na encruzilhada em que a casa de blues se tornou naquela noite.
Porque a pergunta-chave aqui é "o que fazer com meu talento?": Sammie está numa encruzilhada, um jovem dividido entre a herança da vida religiosa com o pai pastor e a sedutora devassidão do mundo do blues -- curiosamente, ambos os lados concordam que sua música tem poder, mas um quer que ele renuncie a isso sob risco de perdição e outro insiste que ele abrace sua vocação mesmo que isso não vá lhe trazer felicidade, e só descobrimos qual é a sua escolha no fim do filme (que tem 2 CENAS PÓS-CRÉDITOS, não saiam da sala antes do final!)
Nem drama histórico, nem terror, nem musical -- e ao mesmo tempo todos os três --interpretações impecáveis, trilha sonora irresistível (incluindo, numa das cenas pós-créditos, um convidado muito especial...), possivelmente o melhor filme do ano -- ou seja, VÃO VER!