segunda-feira, 31 de março de 2025

Ategina, Semana 9: Concepções Errôneas

O fato de Ategina, como tantas outras Divindades da Ibéria/Lusitânia, ter tão pouca representação arqueológica/histórica implica que muito do conhecimento relativo ao seu culto e à sua natureza permanecem desconhecidos (e não sabemos se essa situação será permanente); nesse contexto do não-saber, os achismos pululam para preencher a ausência dos achados.
Vimos algumas ideias muito estranhas sobre Endovélico há 10 anos, e o fato é que muitas delas só vieram a ser porque ele, em sua abundância desproporcional de inscrições e relatos dos tempos da ocupação romana, ocupou a atenção de muita gente (com muito tempo livre) até o início da Idade Média.
No caso presente já dissemos, e repetimos, que não há evidências de que Ategina seja uma Divindade lunar, e que certamente ela NÃO é a "deusa-mãe" do (inexistente) Panteão iberolusocéltico, e que não é 100% definido que a sua identificação com Prosérpina se fundamente em mais que uma ou duas características, então não temos como saber se essas concepções são erradas ou não, é tudo um imenso "pode ser" que nos faz arrancar os cabelos de frustração impotente. 
E é isso, pessoal.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Ategina, Semana 8: Aspectos e Variações

Onde Endovélico tem uma natureza tripla, Ategina é dual.
O mito "emprestado" que associamos a Ela a mostra transitando entre este mundo e o Outro-Mundo, mas a sua passagem é direta e não parece apresentar a liminaridade Dele.
Na metade luminosa do ano, após o Equinócio da Primavera, Ela vem como a Senhora da Vida, a que traz consigo o despertar do longo sono do Inverno, coroada de flores e carregada de frutos; tudo o que Ela toca revive e rebrota, física e espiritualmente
...mas na metade escura do ano, o Equinócio de Outono marca a Sua jornada ao Outro-Mundo para a entronização como Rainha dos Mortos que se segue, portando a coroa de ossos e o manto negro; o mundo dos vivos chora a sua ausência e progressivamente se recolhe para o sono invernal, a introspecção e a meditação sobre o ano que se aproxima do fim ocupam os que aguardam o Javali que trará a Senhora e seu Consorte de volta do Mundo Profundo.
Flores e Ossos, eis a dupla natureza daquela que Renasce.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Ategina, Semana 7: Nomes e Epítetos

No projeto das 30 Semanas, está é a que mais se fundamenta em dados documentados a partir da arqueologia, os "achados" se contrapondo aos "achismos".
Ategina (ou Ataecina, ou Atægina) tem 36 inscrições conhecidas até agora (lembrando que Endovélico tem o recorde absoluto de 72), das quais 15 são de Santa Lucia del Trampal, em Cáceres, na Espanha, onde aparentemente seu culto era associado ao sal, assim como no Monte de São Lourenço em Braga; outros locais arqueológicos são Elvas e Beja em Portugal,  Mérida e Mértola na Espanha, e a região do Rio Guadiana, e datam do início da colonização romana até meados do século III dC (estas últimas em Alcuéscar, na Espanha), incluindo-se as invocações Dela para encontrar objetos roubados e salvar doentes graves que foram achadas em Vila Viçosa.
As grafias diferentes de seu nome provavelmente são devidas à ausência de uma grafia romana padronizada para as Divindades nativas (mas, como já vimos no caso de Endovélico/Andevélico/Enobolico, poderiam ser aspectos cultuais chamados por nomes diferentes).
Ela é chamada de Dea ("Deusa"), Domina ("senhora"), Santa ("santa"), mas esses títulos são genéricos e partilhados com outras Divindades; o que parece ser o epíteto mais exclusivo Dela é o ATAEGINA TURIBRIGENSIS PROSERPINA, ilustrado acima, que apresenta no meio do sincretismo típico da interpretatio romana o atributo local "de Turóbriga" que, como já vimos, se refere a uma cidade que, embora amplamente descrita em outras fontes, ainda não teve sua real localização encontrada.
Mas, para encerrar com um "achismo" meu, me parece adequado partilhar com Ela a expressão do poder de Endovélico enquanto Divindades ctônicas que são: EX IMPERATO AVERNO, "pela determinação emanada das profundezas".

segunda-feira, 10 de março de 2025

Ategina, Semana 6: Panteão



Volto a dizer o que postei antes, não existe um "panteão" propriamente dito na Ibéria (as poucas associações de Divindades historicamente atestadas são a tríade Bande-Nabia-Reve e a dupla de irmãos Arentio-Arentia, e é só), assim deixo claro que o coletivo de Divindades do meu culto pessoal nunca foi cultuado originariamente do modo que faço, desde que todos vêm de lugares e povos diferentes.
Tendo mencionado Endovélico na semana passada, agora vou falar de outros Deuses e Deusas "revelados" a mim pelo livro "A Voz dos Deuses", começando por Tongoenabiago, o deus da Fonte do Ídolo em Braga (o que sugere que ele era cultuado por meus ancestrais diretos, já que meu avô paterno veio de lá), cujo nome vem de uma raiz céltica significando "juramento", que sugere que havia o costume de se jurar pelas águas da fonte, com Tongoenabiago como testemunha do juramento; eu intuo como seus atributos o cão, a cor branca, o grou e o amieiro, e como objeto ritual o cálice.
Coaranioniceus é outro, desta vez na região do Monte Santo de Olisipo, hoje o Parque de Monsanto em Lisboa: alguns o associam ao chamado "Ares Lusitano", deus guerreiro a quem se sacrificavam cavalos, bodes e prisioneiros de guerra, e também como regente das minas de ouro e metais da região, e assim eu o vejo como senhor da abundância e da guerra, com o cavalo e o vento (uma lenda registrada pelos cronistas romanos fala da manada de cavalos sagrados, nascidos de éguas fecundadas pelo vento, que ali viviam) como seus atributos.
Runesocesios ("do mistério da lança"), cultuado em Évora, a mim sugere um guerreiro mais feroz que Coaranioniceus, com sua lança sendo o raio dos céus, e regendo o carvalho, o touro e a espada.
Bandua, padroeiro dos bandos de guerreiros unidos por votos sagrados, é às vezes chamado "o que ata" e uma imagem recém-encontrada, supostamente dele, o mostra com uma corda atada à volta do peito como símbolo desse vínculo; gamo, teixo e corvo são para mim consagrados a ele, que é um dos raros cultuados em diversas localidades, com títulos anexos ao nome como Banderaiecos, Bandioilenaico, Bandueaetobrigos, etc, etc...
Trebaruna, "mistério da casa", é a guardiã do lar (e ligada ao fogo da lareira) e a protetora dos heróis, tocha numa mão, lança na outra, carneiro, pássaro-preto e sorveira como atributos -- Leite de Vasconcelos escreveu muito sobre ela, tanto textos acadêmicos como poemas, e ela foi divulgada ao mundo quando o grupo Moonspell compôs uma música em homenagem a ela, o que a torna uma das Divindades mais conhecidas fora de Portugal.
As duas Deusas que se seguem não são mencionadas por nome no livro de João Aguiar, mas se impuseram a mim de modo difícil de recusar...
A Deusa da Serra da Lua, em Sintra, se manifestou a mim vestida de negro e velada, com a lebre, coruja e salgueiro como seus atributos; o nome que me veio foi Cintia, o antigo nome de Sintra, mas ela avisou que tinha outro nome que mais tarde eu descobriria, e agora a conheço como Iccona.
A Deusa da Serra da Estrela, ou os Montes Hermínios, se apresentou como Hermínia (mas disse que não era "exatamente" assim o seu nome, que anos depois li num artigo sobre os Celtas da Ibéria como Erbina), associada por mim ao urso, falcão e bétula.
Além dos Nove, eu cultuo ao trio Bande-Nabia- Reve como os guardiões do Centro Triplo da liturgia da ADF (Fogo, Poço, Árvore/Monte) e às Matres como a base subjacente da Criação.
E assim meu culto pessoal é mantido.



segunda-feira, 3 de março de 2025

Ategina, Semana 5: Família

Continuando com o tema "não sabemos nada sobre as Divindades da Ibéria/Lusitânia com certeza histórica, mas..." eis que chegamos em outro ponto questionável. 
Endovélico é mesmo o consorte de Ategina?
Autores há que fazem o seguinte raciocínio: se Ategina é sincretizada com Prosérpina, e Endovélico é o Senhor dos Mortos, então ele é Plutão, e então é o cônjuge dela -- como vocês podem ver, o argumento depende da interpretatio romana descrever acuradamente (ou não) o caráter dela, e aí postular um outro sincretismo não-atestado historicamente, e aí misturar a salada muito bem e rezar para que o prato seja minimamente palatável.
Outro argumento é baseado na descrição dela como sendo uma Deusa da cura e dos mortos, e ver na identidade de funções entre ambos uma associação/pareamento...só que eu AINDA não encontrei uma base documental que prove que as pessoas rezavam a Ategina pela cura própria ou de familiares (pedidos de vingança e/ou maldição existem às mancheias, mas isso é outra história)
Outro possível argumento seria de contrapor o aspecto solar de Endovélico ao aspecto lunar de Ategina, mas nem preciso falar da falta de comprovação disso (e, mesmo como UPG, eu tenho dificuldade em perceber essa suposta "lunaridade" dela)
...mas, tendo feito esta desconstrução em regra dos argumentos que os autores modernos criaram, devo dizer que SIM, para mim Eles são um casal Divino, e o único motivo pelo qual eu acredito nisso é um explícito e desavergonhado "porque sim".


domingo, 2 de março de 2025

Carnaval, Quaresma & Outros Horrores (ou não)


Todo ano é, perdoem-me as palavras, a lesma lerda.
"Ain, o Carnaval é uma energia muito densa/ deixa a aura carregada/ só atrai entidades negativas e ligadas à matéria/ gente espiritualizada DE VERDADE não participa disso/ etc, etc, etc"
Eu entenderia se esses comentários rançosos viessem do puritanismo dos Cristãos (esses dias quase que só se fala disso nas páginas catolicrentes das redes), mas nunca deixa de me chocar a presença desse chorume conceitual no meio Pagão/esotérico, e parece que a cada ano fica pior.
O que acontece se olhamos para o Carnaval com olhos-de-druida?
Começamos por ver que o tríduo momesco, para usar seu nome mais empolado, é o exemplo clássico do que a Antropologia chama de "período de reversão": festividades que, desde a antiguidade clássica e o medievo, promovem uma ruptura temporária das estruturas sociais estabelecidas enquanto o evento durar -- homens se vestem de mulher (e vice-versa), servos se sentam à mesa do banquete e são servidos por seus senhores, bêbados fazem sermões nas igrejas e os clérigos cantam canções profanas nas tabernas, e por aí vai, e no dia seguinte tudo volta ao normal, as pessoas exaustas mas estranhamente aliviadas, como se essa ruptura tivesse purgado as tensões e frustrações acumuladas ao longo do ano e destravado as neuroses pessoais e coletivas por elas causadas.
É um tempo de perigo, sim, mas a liberdade caminha lado a lado com ele: vai que a reversão extravase para além do terceiro dia, e a Ordem dê lugar ao Caos (como acabou acontecendo na Veneza renascentista, onde era Carnaval por quase metade do ano, e ninguém mais andava nas ruas sem as máscaras elaboradas que viraram símbolos do Carnaval de Veneza).
É uma energia densa, sim, mas não é mil vezes melhor excretá-la do organismo psicofísico do que fingir que ela não existe e deixá-la fermentando pestilência nas almas? Qualquer miasma que reste na atmosfera é eventualmente metabolizado pela Terra, que sabe muito bem que nem toda densidade é intrinsecamente nociva desde que esteja em seu devido lugar.
É uma festividade essencial para a saúde mental/espiritual do indivíduo/coletividade, e execrado seja quem a declara anátema.
...e agora eu vou fazer uma proposta que vai soar herética para Cristãos e Pagãos ao mesmo tempo...
A Quarta-Feira de Cinzas, o fim do Carnaval, marca o início da Quaresma, o período que antecede a Páscoa e que é caracterizado por pequenas penitências autoimpostas como preparação para a Paixão de Cristo -- isso é a prática católica tradicional dos últimos dois milênios, e não há nada novo nisso, mas os olhos-de-druida não podem deixar de ver paralelos desse costume com o conceito druídico do geis, do qual já escrevi em outra ocasião -- bem, e se nós, Druidistas, utilizássemos este período para trabalhar com os geasa, escolhendo uma privação ou obrigação voluntária e temporária (até o Equinócio, talvez?)
Minha teoria é que, após a purificação trazida pelo Carnaval, a alma (ou as Três Almas) pode ver as coisas com mais clareza, e a disciplina implicada nos geasa neste período em especial pode fortalecer os propósitos da tríplice alma de modos que não seriam possíveis em outras fases do ano.
Assim sendo, em consonância com a Inspiração /|\ , eu proclamo o Tempo dos Votos, entre a exaltação da Festa da Reversão e a celebração do Equinócio da Colheita, e convido quem quiser participar comigo
(porque o bom herege sempre divide a culpa com quem cruzar seu caminho...)