quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Viriditas

Eu criei o conceito de "santos verdes" para descrever aquelas pessoas que, embora plenamente inseridas na ortodoxia cristã, mesmo assim acabaram por expandi-la em prol de uma cosmovisão mais integrada ao mundo natural, entendido como a manifestação visível da Divindade; eis que amanhã, 17 de Setembro, é o dia consagrado a alguém que encarna superlativamente esse conceito, a monja, compositora, mística, médica e erudita Santa Hildegard von Bingen, apelidada "a Sibila do Reno" pelo alcance profético de seus escritos, e que mereceria o hipotético troféu "Melhor Druidesa Disfarçada de Santa" pelos motivos que veremos a seguir. Se olharmos para sua vida & obra pelo prisma das três vocações druídicas, começando pelo caminho dos Bardos, encontraremos uma compositora de hinos sacros, coros e antífonas de estilo curiosamente à parte dos seus contemporâneos do século XII, o que fez com que os eruditos a deixassem de lado por não saberem como classificá-la, omissão esta só redimida no século XX com inúmeras gravações de suas obras - ela tratava a música como oferenda de culto, obra de arte e medicamento da alma (como veremos, a dimensão da cura nunca estava longe do seu trabalho), e não há como ouvi-la sem receber o impacto da sua beleza imanente e também transcendente; mas também existe um componente visual na sua obra, manifesto nas minuciosas descrições que fazia de suas visões místicas, que depois seu secretário Wolmar convertia em iluminuras de caráter cosmogônico, até mesmo mandálico, e que permitem um vislumbre das dimensões além das aparências que ela visitava tão frequentemente. Pelo enfoque do caminho dos Druidas, ela era uma potência religiosa e política a ser respeitada em seu tempo, mesmo sendo mulher e monja (e, portanto, supostamente alguém de quem só se esperava silêncio e obediência) - tendo trazido para a sua causa ninguém menos que são Bernardo de Claraval, que a apoiou com toda a sua influência e autoridade, ela criou dois monastérios (independentemente da ordem dos Beneditinos, à qual ela pertencia), foi conselheira e médica do imperador Frederico Barbarossa, e suas cartas circulavam pela Europa para instruir, aconselhar e corrigir quando necessário: não foi à toa que ela foi reconhecida como santa em vida, informalmente canonizada 400 anos depois de sua morte, e declarada Doutora da Igreja por Bento XVI em reconhecimento pelo papel por ela exercido na Europa medieval. Mas é no caminho dos Vates que ela resplandece, sendo considerada por historiadores como a precursora das ciências naturais na Alemanha medieval, em especial pelos seus tratados de medicina, o Causae et Curae e o Physica : no primeiro ela expõe a base anatômica, humoral (os Quatro Elementos clássicos) e psicológica humana, processos de diagnóstico e procedimentos terapêuticos variados (incluindo a orientação para ferver a água de beber e lavar ferimentos, vejam só), e no segundo ela descreve as propriedades de plantas, pedras preciosas, alimentos e animais e como aplicá-las terapeuticamente (como usar ônix para aliviar a depressão, usar o lúpulo e a cevada da cerveja para suavizar os ânimos, e uma receita de biscoitos para tonificar o sistema nervoso!); hoje, na Europa, há grupos de médicos, naturopatas e outros terapeutas estudando e redescobrindo seus achados para aplicá-los a seus pacientes, com sucesso crescente. Tudo isto, todo esse tesouro de sabedoria mundana e sagrada, centrado no conceito-chave da cosmovisão hildegardeana, a Viriditas - literalmente traduzível como "verdor", a qualidade verdejante que é simultaneamente a raiz da Graça na alma, da saúde no corpo e na fertilidade e abundância no mundo natural (sendo os três inseparáveis na sua concepção), e que tem como seu oposto a ariditas, "aridez, secura", que causa a esterilidade natural, a enfermidade corporal/psicológica e o pecado anímico; não à toa, ela também é considerada uma percursora da ecologia moderna, quando compara o organismo ao jardim no qual habita e que o sustenta, e declara que um só pode ser saudável e "verdejante" quando ambos o forem. Para encerrar estre tributo à Druidesa-que-era-sem-nunca-ter-sido, deixo aqui a receita dos biscoitos terapêuticos: BISCOITOS DA ALEGRIA (receita adaptada*) Misture 3/4 xícara de manteiga com 1 xícara de açúcar mascavo, junte 1 ovo, misture bem,reserve; peneire e misture numa tigela 1 colher de sopa de fermento, 1/4 colher de sopa de sal, 1 e 1/2 xícaras de farinha de trigo, 1 colher de sopa rasa de canela em pó, 1 colher de sopa rasa de noz-moscada, 1/2 colher de sopa rasa de cravo em pó; junte aos poucos os ingredientes secos à massa, misture bem, deixe na geladeira por 40 min para endurecer; faça bolinhas com a massa, achate com a mão para dar forma (fazendo biscoitos pequenos), ponha numa forma untada e enfarinhada e asse no forno preaquecido a 180*C por 12-15 minutos (ou até as bordas dourarem), tire do forno, espere 5 minutos, tire da forma e deixe num prato para terminar de esfriar. *(a receita original é feita com farinha de espelta, uma variedade européia e arcaica de trigo difícil de encontrar no Brasil, mas que Hildegard considerava acima de todos os outros cereais; as quantidades de especiarias podem parecer excessivas, mas lembrem-se que isto é una receita para fins medicinais, e ela advertia que crianças deveriam comer não mais que 3 biscoitos por dia, adultos 5)

sábado, 1 de maio de 2021

Samonios: Meditação

Na luz das velas do Altar, fiz a travessia para Andumnos, o Reino Profundo.
Diante de mim uma colina, e nela uma entrada mantida por um portal de três pedras, e acima de tudo a Lua brilhando.
Dentro da câmara escura da colina, nada senão dois tronos de pedra negra, lado a lado - percebo em minhas mãos duas coroas, uma de cipreste, outra de pinheiro, e reverentemente deposito cada uma num trono.
Então me volto e As vejo.
Veladas de negro, cestas nas mãos. 
Nunca as havia encontrado em visão ou sonho, mas as reconheço imediatamente.
As guardiãs das raízes da terra, sustentáculo do mundo e tudo que há nele.
Elas a quem os Celtas de todas as partes chamaram simplesmente de Matres.
Um mínimo gesto delas, e avanço para estar à sua frente antes de sequer pensar em me mover.
A primeira delas estende sua cesta.
Entregue seus olhos, sua atenção, sua integridade.
Ponho em sua cesta uma chama viva.
Entregue seu cérebro, sua vontade, sua coragem.
Ponho em sua cesta uma nuvem relampejante.
Entregue sua cabeça, seu pensamento, sua perseverança
Ponho em sua cesta um punhado de estrelas.
A segunda delas estende sua cesta.
Entregue seu fôlego, sua fala, sua generosidade
Ponho em sua cesta um rodamoinho cintilante.
Entregue sua face, sua intuição, sua visão
Ponho em sua cesta um raio de sol dourado.
Entregue seu sangue, sua imaginação, sua fertilidade
Ponho em sua cesta uma onda fluida.
A terceira delas estende sua cesta. 
Entregue sua mente, sua percepção, sua moderação
Ponho em sua cesta o luar prateado. 
Entregue sua carne, seu afeto, sua devoção
Ponho em sua cesta um punhado de terra escura.
Entregue seus ossos, sua memória, seu conhecimento
Ponho em sua cesta uma rocha polida.
As Matres saem no mais profundo silêncio. 
Nada restou para entregar.
Nada restou de quem fez a entrega.
Nada restou.
A Escuridão vem e dissolve tudo.
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EX IMPERATO AVERNO.
Consciência surge onde o Vazio estava.
Vem.
Dois pilares de chama negra e cintilante, um diante de cada trono, cada um com uma das coroas ofertadas em tributo. 
Vem, diz o murmúrio que emana das chamas.
O espaço entre elas é uma porta a atravessar.
VEM.
Num breve instante me vejo do outro lado da passagem, após um instante infinitesimal de dor intensa, e estou de novo de posse de meus dúile, dos nove Elementos que entreguei às Três. 
Volto-me e vejo os pilares da chama negra, e sei que são os Senhores do Reino Profundo, que me refizeram e restauraram, e sinto a Vida fluindo em mim.
A dor que você sentiu não é sua, diz Ele.
É a dor do mundo e de todos que nele vivem, diz Ela.
Pelo que poderiam ter sido e não foram.
Pelo que foram e não deviam ter sido.
Essa dor agora desperta para ser curada.
E precisa passar por um coração humano para isso.
Você, e outros, podem carregar um pouco dela a cada dia, e assim aliviar o fardo do mundo.
Lembre que essa dor não é sua, e terá a força necessária para carregar e liberar o fardo sem torná-lo seu.
Eles sabem que aceito a tarefa.
E não poderia ser de outro modo.
Morri diante das Matres, e renasci pelo imperativo emanado das profundezas, pela vontade de Endovélico e Ategina, e nesta vida renovada não há espaço para a dúvida ou o cansaço de antes.
E, se houver, se a exaustão e o desânimo tomarem conta de mim, sei agora que posso morrer para o eu exaurido e renascer em força e vida abundante pelas mãos Deles.
Em profunda gratidão, reverencio Rei e Rainha do Andumnos, e um instante depois retorno da travessia para a luz das velas do Altar.
Neste Samonios, que o Mistério da Morte e da Vida se dê a conhecer a todos, da forma que cada um puder entender. 
:TEIUOREIKIS: