sábado, 14 de junho de 2025
Ategina, Semana 20: Arte Evocativa
Esta imagem simultaneamente celestial e ctônica, criação de Javier Barjollo, diz mais da Senhora do que mil palavras poderiam...
domingo, 8 de junho de 2025
Ategina, Semana 19: Qualidades
Ategina, como vimos há algumas semanas atrás, é aquela-que-vai-sem-olhar-para-trás, e nada pode dissuadi-la de seu propósito inabalável - seja buscar seu amado sem medir riscos, seja ir em socorro dos devotos que A invocam, ela é tão merecedora do epíteto "prestativíssima" quanto seu consorte divino
...mas vocês estão se perguntando, que raios essa imagem do Budismo tibetano tem a ver com uma Deusa lusitano-celtibérica?
Pois então, esta é a Tara Verde (ela apresenta muitas cores e atributos, está é só uma delas), a Salvadora, aquela que remove obstáculos no caminho da iluminação de seus devotos.
Vejam que, ao invés de estar sentada na postura do lótus, como tantas outras deidades budistas, ela é retratada com a perna direita avançando para a frente: esse gesto, na simbologia do Vajrayana, representa sua perene disposição em se levantar de seu trono de lótus e ir em auxílio de todos os seres - agora vocês entendem porque eu escolhi essa imagem? Porque eu não lembrei dela ao falar dos outros panteões, esta ficou disponível para que hoje eu pudesse falar da Compassiva, da Auxiliadora, da Sempre Prestativa com uma imagem que vale por mil palavras.
...mas vocês estão se perguntando, que raios essa imagem do Budismo tibetano tem a ver com uma Deusa lusitano-celtibérica?
Pois então, esta é a Tara Verde (ela apresenta muitas cores e atributos, está é só uma delas), a Salvadora, aquela que remove obstáculos no caminho da iluminação de seus devotos.
Vejam que, ao invés de estar sentada na postura do lótus, como tantas outras deidades budistas, ela é retratada com a perna direita avançando para a frente: esse gesto, na simbologia do Vajrayana, representa sua perene disposição em se levantar de seu trono de lótus e ir em auxílio de todos os seres - agora vocês entendem porque eu escolhi essa imagem? Porque eu não lembrei dela ao falar dos outros panteões, esta ficou disponível para que hoje eu pudesse falar da Compassiva, da Auxiliadora, da Sempre Prestativa com uma imagem que vale por mil palavras.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Ategina, Semana 18: Gênero e Sexualidade
Quando analisamos o culto de Endovélico anteriormente, consideramos a questão das suas 72 inscrições atestadas, com alta representação feminina (33% de devotas), a possível similaridade com o templo de Asclépio em Epidauro e seus ex-votos de órgãos genitais curados pelo Deus, e a visão romana (estereotipada?) da Ibéria como o "centro sexual" do Mediterrâneo.
Para Ategina não dispomos dos mesmos recursos, porque pouquíssimas inscrições, seja nos altares ou nas placas de defixio, nomeiam quem as inscreveu, e as ainda mais raras solicitações de cura não estão reunidas num inexistente santuário de cura sob a regência Dela.
Podemos, é claro, supor que a fertilidade do solo e das colheitas que Ela proporciona desse ensejo a quem buscasse ajuda nas manifestações mais "carnais" dessa fertilidade (e mesmo nas questões não-reprodutivas do sexo), mas sem evidências atestadas disso nas inscrições que temos.
E é aí que adentramos território desconhecido, guiados pela bruxuleante luz da UPG.
Mencionei de passagem, quando vimos a Cabra dentre os símbolos de Ategina, a hipotética relação Dela com a famigerada Oração da Cabra Preta, do clássico Livro de São Cipriano (mas que aparentemente se originou no Catimbó do Nordeste por volta de 1940, vejam só) e eis que um trecho dela diz:
(...assim como trinco fecha e trinco abre, quero o coração dessa(e) desgraçada(o), que não tenha mais sossego enquanto não for minha (meu), que ela(e) fique cheia(o) de coceira para não gozar nem ser feliz com outro(a) homem (mulher) que não seja eu...)
A força mítica e mágica dessa oração é evidente a quem a leia -- mas devemos lembrar que não há nenhuma evidência que confirme a OdCP como uma relíquia sobrevivente do culto original a Ategina.
Podemos, sim, usar esse conjuro em nome Dela no seu aspecto ctônico (ou a outra versão, que tem usos mais gerais que o da amarração), mas sem inventar uma origem arcaica transmitida da boca ao ouvido ao longo dos séculos, sem falsear a verdade em nome do glamour mágico, pois essa é uma de inúmeras situações onde a força do que é Válido triunfa sobre a falsa necessidade do Autêntico.
Bons conjuros, pessoal
(e lembrando que semana que vem é o Dia dos Namorados)
Para Ategina não dispomos dos mesmos recursos, porque pouquíssimas inscrições, seja nos altares ou nas placas de defixio, nomeiam quem as inscreveu, e as ainda mais raras solicitações de cura não estão reunidas num inexistente santuário de cura sob a regência Dela.
Podemos, é claro, supor que a fertilidade do solo e das colheitas que Ela proporciona desse ensejo a quem buscasse ajuda nas manifestações mais "carnais" dessa fertilidade (e mesmo nas questões não-reprodutivas do sexo), mas sem evidências atestadas disso nas inscrições que temos.
E é aí que adentramos território desconhecido, guiados pela bruxuleante luz da UPG.
Mencionei de passagem, quando vimos a Cabra dentre os símbolos de Ategina, a hipotética relação Dela com a famigerada Oração da Cabra Preta, do clássico Livro de São Cipriano (mas que aparentemente se originou no Catimbó do Nordeste por volta de 1940, vejam só) e eis que um trecho dela diz:
(...assim como trinco fecha e trinco abre, quero o coração dessa(e) desgraçada(o), que não tenha mais sossego enquanto não for minha (meu), que ela(e) fique cheia(o) de coceira para não gozar nem ser feliz com outro(a) homem (mulher) que não seja eu...)
A força mítica e mágica dessa oração é evidente a quem a leia -- mas devemos lembrar que não há nenhuma evidência que confirme a OdCP como uma relíquia sobrevivente do culto original a Ategina.
Podemos, sim, usar esse conjuro em nome Dela no seu aspecto ctônico (ou a outra versão, que tem usos mais gerais que o da amarração), mas sem inventar uma origem arcaica transmitida da boca ao ouvido ao longo dos séculos, sem falsear a verdade em nome do glamour mágico, pois essa é uma de inúmeras situações onde a força do que é Válido triunfa sobre a falsa necessidade do Autêntico.
Bons conjuros, pessoal
(e lembrando que semana que vem é o Dia dos Namorados)
segunda-feira, 26 de maio de 2025
Ategina, Semana 17: Relações com Outros Panteões
Esta é a semana das similaridades, semelhanças e "coincidências", os muitos modos pelos quais as Divindades ecoam e reverberam umas às outras.
Já vimos os muitos traços em comum entre Ategina e Prosérpina/Perséfone nas semanas anteriores, devidamente atestados pela interpretatio romana, e mencionei de passagem o mito da descida de Inanna ao Reino dos Mortos sumeriano em busca de seu consorte Dumuzi e das provações pelas quais Ela passou até ascender triunfante de Sua jornada.
Eis que Dumuzi, em algumas versões, foi morto caçando um javali, similarmente não apenas a Endovélico mas também ao Adônis grego, pranteado por Afrodite (mas aqui, ao invés de ir atrás dele no Hades, a Deusa resignada cria uma nova flor com o sangue derramado sobre o solo, um renascimento mais simbólico que literal).
E me ocorre pensar na clássica balada escocesa de Tam Lin, onde ele é prisioneiro do Povo das Fadas e a jovem Janet precisa cumprir uma série de desafios para, no fim, conseguir resgatá-lo.
E também me veio o mito de Psique, que cumpriu outra série de tarefas impossíveis, incluindo descer ao Hades (não para resgatar Eros, que não estava lá, mas sim para levar um pouco da beleza de Perséfone para Afrodite) para se reencontrar com seu amado.
E se alguém tiver outra sugestão, agradeço.
Já vimos os muitos traços em comum entre Ategina e Prosérpina/Perséfone nas semanas anteriores, devidamente atestados pela interpretatio romana, e mencionei de passagem o mito da descida de Inanna ao Reino dos Mortos sumeriano em busca de seu consorte Dumuzi e das provações pelas quais Ela passou até ascender triunfante de Sua jornada.
Eis que Dumuzi, em algumas versões, foi morto caçando um javali, similarmente não apenas a Endovélico mas também ao Adônis grego, pranteado por Afrodite (mas aqui, ao invés de ir atrás dele no Hades, a Deusa resignada cria uma nova flor com o sangue derramado sobre o solo, um renascimento mais simbólico que literal).
E me ocorre pensar na clássica balada escocesa de Tam Lin, onde ele é prisioneiro do Povo das Fadas e a jovem Janet precisa cumprir uma série de desafios para, no fim, conseguir resgatá-lo.
E também me veio o mito de Psique, que cumpriu outra série de tarefas impossíveis, incluindo descer ao Hades (não para resgatar Eros, que não estava lá, mas sim para levar um pouco da beleza de Perséfone para Afrodite) para se reencontrar com seu amado.
E se alguém tiver outra sugestão, agradeço.
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Ategina, Semana 16: Valores do Panteão
Como já vimos, não existiu um panteão unificado das tribos celtibéricas/lusitanas, e como mencionei em outra ocasião, as culturas pagãs tendiam a ver a ética como sendo algo encorajado pelas Divindades, mas de criação puramente humana -- assim sendo, penso que uma boa olhada no povo que cultuava Ategina pode nos ajudar a definir os seus valores morais para assim responder a questão: de que modo Ela reflete os valores éticos da cultura de seus devotos?
Os cronistas romanos descreveram os Lusitanos como "um povo que não se governa nem se deixa governar", independentes mas indisciplinados, como os Celtas de todas as partes da Europa sempre foram, razão pela qual o Javali foi subjugado pela Águia -- um herói autocontrolado e estratégico como Viriato é a exceção que confirma a regra, e mesmo ele precisou esperar que seus companheiros sitiados na Turdetânia desesperassem, pois só assim se submeteriam ao seu comando sem discutir.
Um povo frugal e austero, profundamente religioso, dormindo no chão sobre seus mantos negros, comendo pão de bolota de carvalho e bebendo água ou cerveja de trigo, saindo da floresta em ataques-relâmpago e voltando velozmente a ela, ferozes e indomados como javalis selvagens: fica evidente a admiração relutante dos cronistas por essas virtudes rústicas, que comparadas aos modos decadentes de Roma pareciam ainda mais admiráveis e dignas de louvor.
Da outra vez eu comparei Endovélico a Viriato, e assim não seria estranho examinarmos sua consorte Tangina em busca de semelhanças com nossa Deusa.
Tangina, filha do rico e nobre Astolpas, contra tudo e todos declarou que o amor que aquele bandoleiro sem nome, agora convertido em líder da revolta dos Lusitanos, tinha por ela era plenamente correspondido, apesar da ambivalente aprovação de seu pai, dividido entre o patriotismo e os vínculos comerciais com os Romanos - os cronistas dizem que, ao saber que seu sogro havia convidado gente de Roma para a festa de casamento, Viriato deu ordens para proceder diretamente ao rito nupcial, sem brindes ou festejos preliminares, e no altar encontrou Tangina usando um manto de viagem sobre o vestido nupcial, plenamente de acordo com seu amado, e após a bênção final ela montou no cavalo de seu agora marido sem olhar para o pai uma única vez.
E acho que esta qualidade, a decisão de ir-sem-olhar-para-trás, é um traço descritivo de Ategina: quando o Javali leva Endovélico ao Outro-Mundo, ela o segue sem pensar duas vezes ou temer o que encontrará no caminho, e essa coragem amorosa é recompensada com o trono de Rainha dos Mortos ao lado do Senhor Muito-Negro.
Ela é também a Mãe que tudo dá a Seus filhos, seja aos que rezam pela colheita bem sucedida, seja aos que chamam Seu nome em defixiones de maldição (lembrando que a maioria dos povos antigos não tinha muitos pruridos de se entregar a práticas tããão "negativas"), sempre pronta a atender os que A chamam em perfeita devoção.
Os cronistas romanos descreveram os Lusitanos como "um povo que não se governa nem se deixa governar", independentes mas indisciplinados, como os Celtas de todas as partes da Europa sempre foram, razão pela qual o Javali foi subjugado pela Águia -- um herói autocontrolado e estratégico como Viriato é a exceção que confirma a regra, e mesmo ele precisou esperar que seus companheiros sitiados na Turdetânia desesperassem, pois só assim se submeteriam ao seu comando sem discutir.
Um povo frugal e austero, profundamente religioso, dormindo no chão sobre seus mantos negros, comendo pão de bolota de carvalho e bebendo água ou cerveja de trigo, saindo da floresta em ataques-relâmpago e voltando velozmente a ela, ferozes e indomados como javalis selvagens: fica evidente a admiração relutante dos cronistas por essas virtudes rústicas, que comparadas aos modos decadentes de Roma pareciam ainda mais admiráveis e dignas de louvor.
Da outra vez eu comparei Endovélico a Viriato, e assim não seria estranho examinarmos sua consorte Tangina em busca de semelhanças com nossa Deusa.
Tangina, filha do rico e nobre Astolpas, contra tudo e todos declarou que o amor que aquele bandoleiro sem nome, agora convertido em líder da revolta dos Lusitanos, tinha por ela era plenamente correspondido, apesar da ambivalente aprovação de seu pai, dividido entre o patriotismo e os vínculos comerciais com os Romanos - os cronistas dizem que, ao saber que seu sogro havia convidado gente de Roma para a festa de casamento, Viriato deu ordens para proceder diretamente ao rito nupcial, sem brindes ou festejos preliminares, e no altar encontrou Tangina usando um manto de viagem sobre o vestido nupcial, plenamente de acordo com seu amado, e após a bênção final ela montou no cavalo de seu agora marido sem olhar para o pai uma única vez.
E acho que esta qualidade, a decisão de ir-sem-olhar-para-trás, é um traço descritivo de Ategina: quando o Javali leva Endovélico ao Outro-Mundo, ela o segue sem pensar duas vezes ou temer o que encontrará no caminho, e essa coragem amorosa é recompensada com o trono de Rainha dos Mortos ao lado do Senhor Muito-Negro.
Ela é também a Mãe que tudo dá a Seus filhos, seja aos que rezam pela colheita bem sucedida, seja aos que chamam Seu nome em defixiones de maldição (lembrando que a maioria dos povos antigos não tinha muitos pruridos de se entregar a práticas tããão "negativas"), sempre pronta a atender os que A chamam em perfeita devoção.
segunda-feira, 12 de maio de 2025
Ategina, Semana 15: Aspectos Mundanos
Um ponto presente nas fés pagãs como um todo é a crença na imanência divina, ou seja, na presença ativa das Divindades no mundo, diferente da visão monoteísta de um deus transcendente habitando um plano superior e vendo o mundo do lado de fora; os Deuses antigos habitam tanto o mundo natural e seus sempre variados fenõmenos quanto as culturas humanas em suas inúmeras manifestações.
No caso de Ategina, está claro que ela nunca está longe daqui, nem mesmo quando desce e assume a face da Senhora do Reino dos Mortos -- mas ela pode ser contatada sem ser por meio das devoções em seus altares domésticos? Qual é o aspecto mundano da sua presença?
Em nossa sociedade, a face da Senhora da Colheita é a mais óbvia, pela igualmente óbvia dependência que a humanidade tem da Terra e seus frutos, e esse é um aspecto cuja celebração é muito acessível, seja para quem planta algo num vaso em casa e comemora cada florada e colheita por mais modesta que pareça, seja nas muitas festas da colheita em várias cidades do Brasil, muitas delas próximas o bastante para justificar uma visita especial e uma celebração secreta em nome Dela.
Quanto à Rainha dos Mortos, já vimos que esse é um tema evitado como a peste pela civilização moderna, que gostaria de viver sem a iminente sombra da Morte e vai a extremos para evitar sequer a lembrança dela, então isso, ao que parece, é a tarefa das gerações vindouras.
Agora que viram como é fácil encontrar os Deuses, vão procurar por aí e vejam a quem encontram no caminho...
No caso de Ategina, está claro que ela nunca está longe daqui, nem mesmo quando desce e assume a face da Senhora do Reino dos Mortos -- mas ela pode ser contatada sem ser por meio das devoções em seus altares domésticos? Qual é o aspecto mundano da sua presença?
Em nossa sociedade, a face da Senhora da Colheita é a mais óbvia, pela igualmente óbvia dependência que a humanidade tem da Terra e seus frutos, e esse é um aspecto cuja celebração é muito acessível, seja para quem planta algo num vaso em casa e comemora cada florada e colheita por mais modesta que pareça, seja nas muitas festas da colheita em várias cidades do Brasil, muitas delas próximas o bastante para justificar uma visita especial e uma celebração secreta em nome Dela.
Quanto à Rainha dos Mortos, já vimos que esse é um tema evitado como a peste pela civilização moderna, que gostaria de viver sem a iminente sombra da Morte e vai a extremos para evitar sequer a lembrança dela, então isso, ao que parece, é a tarefa das gerações vindouras.
Agora que viram como é fácil encontrar os Deuses, vão procurar por aí e vejam a quem encontram no caminho...
terça-feira, 6 de maio de 2025
Pecadores
(SPOILERS à frente, NÃO digam que eu não avisei)
Irmãos gêmeos voltam à sua cidade natal, após uma vida de crimes, aventuras, guerra e paz, para recomeçar suas vidas: um tema bastante explorado nas artes em geral e no cinema em particular.
Mas, e se os irmãos forem negros, e a cidade natal for no sul dos EUA, nos anos 30, em território da Ku Klux Klan?
E se, além disso, eles e seus amigos e familiares forem atacados por um bando de vampiros errantes e famintos?
E se tudo isso tiver sido desencadeado por uma noite de puro blues, executado por um músico tão poderoso que, naquela noite, abriu as portas entre os mundos e atraiu o que não devia?
Esse é o contexto de Pecadores, o novo filme de Ryan Coogler, e estes são os temas que vamos examinar mais de perto.
O diretor já tem um currículo sólido em falar dos negros e da opressão a que são sujeitos há séculos, e este filme não é exceção: a comunidade da cidade sofre violências de vários tipos, e a casa de blues que os irmãos abrem é um escape, uma libertação das amarras do cotidiano, e por isso mesmo fadada ao fracasso.
Mas naquela que seria a primeira e última noite da casa, na mais incrível cena do filme, a apresentação de Sammie como que rompe não só os grilhões invisíveis dos clientes, mas as próprias barreiras entre tempos, lugares e mundos.
E isso atrai um visitante especial: Remmick, imigrante irlandês e mestre vampiro, que diz ter sido chamado pela música de Sammie para incluí-lo no seu grupo de desmortos errantes, para que seu dom os ajude a refazer o mundo à sua imagem -- sem muitas palavras, o filme lembra que os irlandeses também foram um povo oprimido na Irlanda e marginalizado nos EUA, e deixa claro que a sede de Remmick é por vingança mais que por sangue.
Numa curiosíssima inversão, o tradicional clichê do blueseiro na encruzilhada buscando a música do Diabo dá lugar ao Diabo buscando a música do blueseiro na encruzilhada em que a casa de blues se tornou naquela noite.
Porque a pergunta-chave aqui é "o que fazer com meu talento?": Sammie está numa encruzilhada, um jovem dividido entre a herança da vida religiosa com o pai pastor e a sedutora devassidão do mundo do blues -- curiosamente, ambos os lados concordam que sua música tem poder, mas um quer que ele renuncie a isso sob risco de perdição e outro insiste que ele abrace sua vocação mesmo que isso não vá lhe trazer felicidade, e só descobrimos qual é a sua escolha no fim do filme (que tem 2 CENAS PÓS-CRÉDITOS, não saiam da sala antes do final!)
Nem drama histórico, nem terror, nem musical -- e ao mesmo tempo todos os três --interpretações impecáveis, trilha sonora irresistível (incluindo, numa das cenas pós-créditos, um convidado muito especial...), possivelmente o melhor filme do ano -- ou seja, VÃO VER!
Irmãos gêmeos voltam à sua cidade natal, após uma vida de crimes, aventuras, guerra e paz, para recomeçar suas vidas: um tema bastante explorado nas artes em geral e no cinema em particular.
Mas, e se os irmãos forem negros, e a cidade natal for no sul dos EUA, nos anos 30, em território da Ku Klux Klan?
E se, além disso, eles e seus amigos e familiares forem atacados por um bando de vampiros errantes e famintos?
E se tudo isso tiver sido desencadeado por uma noite de puro blues, executado por um músico tão poderoso que, naquela noite, abriu as portas entre os mundos e atraiu o que não devia?
Esse é o contexto de Pecadores, o novo filme de Ryan Coogler, e estes são os temas que vamos examinar mais de perto.
O diretor já tem um currículo sólido em falar dos negros e da opressão a que são sujeitos há séculos, e este filme não é exceção: a comunidade da cidade sofre violências de vários tipos, e a casa de blues que os irmãos abrem é um escape, uma libertação das amarras do cotidiano, e por isso mesmo fadada ao fracasso.
Mas naquela que seria a primeira e última noite da casa, na mais incrível cena do filme, a apresentação de Sammie como que rompe não só os grilhões invisíveis dos clientes, mas as próprias barreiras entre tempos, lugares e mundos.
E isso atrai um visitante especial: Remmick, imigrante irlandês e mestre vampiro, que diz ter sido chamado pela música de Sammie para incluí-lo no seu grupo de desmortos errantes, para que seu dom os ajude a refazer o mundo à sua imagem -- sem muitas palavras, o filme lembra que os irlandeses também foram um povo oprimido na Irlanda e marginalizado nos EUA, e deixa claro que a sede de Remmick é por vingança mais que por sangue.
Numa curiosíssima inversão, o tradicional clichê do blueseiro na encruzilhada buscando a música do Diabo dá lugar ao Diabo buscando a música do blueseiro na encruzilhada em que a casa de blues se tornou naquela noite.
Porque a pergunta-chave aqui é "o que fazer com meu talento?": Sammie está numa encruzilhada, um jovem dividido entre a herança da vida religiosa com o pai pastor e a sedutora devassidão do mundo do blues -- curiosamente, ambos os lados concordam que sua música tem poder, mas um quer que ele renuncie a isso sob risco de perdição e outro insiste que ele abrace sua vocação mesmo que isso não vá lhe trazer felicidade, e só descobrimos qual é a sua escolha no fim do filme (que tem 2 CENAS PÓS-CRÉDITOS, não saiam da sala antes do final!)
Nem drama histórico, nem terror, nem musical -- e ao mesmo tempo todos os três --interpretações impecáveis, trilha sonora irresistível (incluindo, numa das cenas pós-créditos, um convidado muito especial...), possivelmente o melhor filme do ano -- ou seja, VÃO VER!
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Ategina, Semana 14: Culto Moderno
Alguns de nós, no meio Pagão, nos denominamos Reconstrucionistas, ou seja, nosso objetivo é reconstruir com a maior fidelidade possível os cultos antigos, baseados em evidências da arqueologia, história, linguística e religião comparada, e adicionando a isso as GPNs que não contradigam os achados objetivos acima citados -- mas a idéia não é reviver o culto-como-era-então, incluindo aí sacrifícios animais e/ou humanos e outros anacronismos autênticos mas não mais válidos para a nossa época: a idéia por detrás dos Recons mais sensatos é tentar imaginar como seria se o culto tivesse sobrevivido à romanização e à cristianização do mundo antigo e viesse evoluindo pelos séculos até os dias de hoje, ou seja, fazer o culto de uma forma adequada ao século XXI.
É por isto, entre outros vários motivos, que eu não sacrifico gansos vivos, que dirá cabras, a Ategina em meu altar doméstico.
Como disse antes, o culto diário implica em orações e oferendas às Divindades de meu panteão pessoal; a cada nove dias (o último foi anteontem), o culto e as oferendas enfatizam Ategina em seu dia, com pão e maçã em seu altar.
Eu uso o formato ritual básico da ADF, com invocações ao Centro Sagrado, às Três Famílias, a abertura do Portal e as Invocações antes das Oferendas, com uso do Oráculo para saber se foram aceitas e que dons me foram dados em troca, e encerramento formal, tudo isso com uso extensivo do Celtibérico -- após tantos anos, as ações rituais fluem de modo quase automático, o que deixa a consciência livre para ficar em modo contemplativo e sentir os tempos corretos para cada ação, bem como traduzir o Oráculo do modo mais preciso possível.
A presença da Deusa é inequivocamente sentida quando a Invocação é feita e as Oferendas apresentadas, quem já o fez sabe muito bem do que falo, aos outros só aconselho tentar...
É por isto, entre outros vários motivos, que eu não sacrifico gansos vivos, que dirá cabras, a Ategina em meu altar doméstico.
Como disse antes, o culto diário implica em orações e oferendas às Divindades de meu panteão pessoal; a cada nove dias (o último foi anteontem), o culto e as oferendas enfatizam Ategina em seu dia, com pão e maçã em seu altar.
Eu uso o formato ritual básico da ADF, com invocações ao Centro Sagrado, às Três Famílias, a abertura do Portal e as Invocações antes das Oferendas, com uso do Oráculo para saber se foram aceitas e que dons me foram dados em troca, e encerramento formal, tudo isso com uso extensivo do Celtibérico -- após tantos anos, as ações rituais fluem de modo quase automático, o que deixa a consciência livre para ficar em modo contemplativo e sentir os tempos corretos para cada ação, bem como traduzir o Oráculo do modo mais preciso possível.
A presença da Deusa é inequivocamente sentida quando a Invocação é feita e as Oferendas apresentadas, quem já o fez sabe muito bem do que falo, aos outros só aconselho tentar...
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Ategina, Semana 13: Relevância Atual
Depois desta exposição sobre Ategina e seu culto, a pergunta surgindo na mente dos leitores é essa: muito bem, mas qual é a relevância disso tudo nos dias de hoje, porque reviver um culto esquecido de uma época e cultura ainda mais obscuras, qual o propósito disso? Essa pergunta tem dois níveis, o geral e o específico, e vou responder separadamente a cada um deles.
No plano geral, a razão pela qual pessoas de todas as nações, classes, culturas estão revivendo os antigos cultos politeístas é multiforme -- as religiões oficiais, incluídas aí a ciência e as ideologias políticas, já não dão mais conta da necessidade humana universal por sentido, valor e propósito da existência (diga-se de passagem, não pela primeira vez na história), e todas as vezes em que isso aconteceu as pessoas olharam para o passado e lá redescobriram uma pureza de crença e vitalidade de devoção que foram potentes o bastante para preencher as almas desses buscadores insatisfeitos; outros fatores, como a identificação com a cultura dos ancestrais desses buscadores, ou nostalgia por épocas em que a vida era menos complicada e mais heróica, ou a influência da ficção/fantasia, tem o seu peso aqui, mas a motivação fundamental vem do fato de que nem só de pão vive o homem, há necessidades espirituais que devem ser satisfeitas sob pena da morte-em-vida que vem caracterizando, cada vez mais, a paisagem anímica do mundo moderno.
No plano específico, porque Ategina? Num mundo em que os Mistérios da morte e do renascimento, onipresentes na antiguidade pagã (Perséfone/Prosérpina/Inanna/Ishtar), foram esquecidos e precisam ser rememorados/recriados porque a alma necessita passar por esta Iniciação, pois "quem aprende a morrer antes de morrer, não morre após morrer" como diz o antigo provérbio, eis que Ategina oferece uma vivência mais pura do morrer e renascer, sem os traumas adicionais do rapto de Perséfone (porque sua descida ao Outro-Mundo é voluntária) ou da degradação e martírio de Inanna (porque ela recebe honrarias e o próprio trono de Rainha), e assim esse processo se torna mais acessível a quem dele precisa.
E vejam bem, ambas as respostas acima são meramente humanas, centradas nas necessidades e nas ações puramente humanas -- mas as Divindades, Ategina entre elas, são indivíduos dotados de razão, vontade e propósito, e a iniciativa do contato é no mínimo tanto delas quanto nossa; elas têm deixado bem claro, de vários modos, que estão interessadas em voltar a fazer parte de nossas vidas, mas agora em bases menos desiguais, pois o mesmo desenvolvimento cultural que num primeiro instante nos afastou delas também nos deu os meios para que agora possamos compreendê-las melhor e, de modo livre e consciente, renovar as antigas alianças para o bem de nosso mundo.
segunda-feira, 21 de abril de 2025
Ategina, Semana 12: Locais de Culto
Já vimos que as evidências arqueológicas do culto de Ategina se dividem entre várias localidades da Península Ibérica, em especial a portuguesa Elvas e as espanholas Mérida e Cárceres, e também aprendemos sobre sua associação onomástica com a enigmática Turobriga, que ninguém sabe ao certo onde ficava (o verbete da Wikipedia em espanhol a localiza na província de Aroche, mas isso não é unanimidade entre os acadêmicos especializados).
O artigo da pesquisadora Cristina Lopes na revista Arqueologia em Portugal sugere a possibilidade de que o centro/origem do culto de Ategina era em Turobriga, e de lá teria se irradiado para as localidades mais conhecidas; então ela passa a descrever as escavações em Alcuéscar, Cáceres, região de fronteira entre os povos Lusitano, Vetão, Celta, Túrdulo e Celtibérico, um vale de águas ferruginosas e medicinais que, curiosamente, é idêntico à descrição do lucus feroniae, o bosque sagrado de Mérida, e reforça a importância do rio Guadiana como parte da sua geografia sagrada.
Dada a carência de locais atestados e a impraticidade de se deslocar até algum deles (exceto, eventualmente, no caso de uma peregrinação se a possibilidade se apresentar), o que resta aos devotos modernos?
Fazer altares domésticos é a solução ideal (e provavelmente a mais correta historicamente, porque o culto à luz da lareira tinha prioridade sobre a devoção nos santuários públicos); no entanto, não posso encerrar a discussão desta semana sem falar na Vila Pagã, a inacreditável e audaciosa iniciativa de Rafael Nolêto ao criar uma comunidade pagã pública e aberta à visitação no Piauí, e que dentre seus múltiplos templos abriga um santuário exclusivo às Divindades iberolusitanas, em especial Ategina, Endovélico, Nábia e Trebaruna - um dia eu estarei lá, diante de Suas imagens, prestando culto à Dea Domina Sancta como deve ser...
O artigo da pesquisadora Cristina Lopes na revista Arqueologia em Portugal sugere a possibilidade de que o centro/origem do culto de Ategina era em Turobriga, e de lá teria se irradiado para as localidades mais conhecidas; então ela passa a descrever as escavações em Alcuéscar, Cáceres, região de fronteira entre os povos Lusitano, Vetão, Celta, Túrdulo e Celtibérico, um vale de águas ferruginosas e medicinais que, curiosamente, é idêntico à descrição do lucus feroniae, o bosque sagrado de Mérida, e reforça a importância do rio Guadiana como parte da sua geografia sagrada.
Dada a carência de locais atestados e a impraticidade de se deslocar até algum deles (exceto, eventualmente, no caso de uma peregrinação se a possibilidade se apresentar), o que resta aos devotos modernos?
Fazer altares domésticos é a solução ideal (e provavelmente a mais correta historicamente, porque o culto à luz da lareira tinha prioridade sobre a devoção nos santuários públicos); no entanto, não posso encerrar a discussão desta semana sem falar na Vila Pagã, a inacreditável e audaciosa iniciativa de Rafael Nolêto ao criar uma comunidade pagã pública e aberta à visitação no Piauí, e que dentre seus múltiplos templos abriga um santuário exclusivo às Divindades iberolusitanas, em especial Ategina, Endovélico, Nábia e Trebaruna - um dia eu estarei lá, diante de Suas imagens, prestando culto à Dea Domina Sancta como deve ser...
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Ategina, Semana 11: Festivais, Dias Santos, Épocas
Já vimos que os Equinócios de Outono e Primavera marcam as transições de Ategina entre o Outro-Mundo e este, e assim estas são as datas atribuídas a Ela (juntamente com Endovélico) pela Bruxaria Tradicional Ibérica- sempre é bom reforçar que não há evidências históricas pré-cristâs ou mesmo pré-romanas que indiquem datas tradicionais de culto das Divindades da Lusitânia e Ibéria (com a única e notável exceção de Nábia, celebrada em 9 de Abril conforme o calendário romano).
Assim sendo, qualquer outra afirmação a respeito disto é fruto de inspiração moderna/GPN, como a minha: eu cultuo 9 Divindades num ciclo de "novena", e amanhã, 15/4, é o dia de Ategina (que se repetirá em 24/4, 9 dias depois, e assim por diante), e também atribuo cada festividade da Roda do Ano neopagã a um dos Numes (Endovélico de fora da Roda, com uma festa secreta), e nesse esquema Ategina tem o Lughnasad como o seu dia de festa particular, em seu aspecto de Senhora da Colheita.
Assim sendo, qualquer outra afirmação a respeito disto é fruto de inspiração moderna/GPN, como a minha: eu cultuo 9 Divindades num ciclo de "novena", e amanhã, 15/4, é o dia de Ategina (que se repetirá em 24/4, 9 dias depois, e assim por diante), e também atribuo cada festividade da Roda do Ano neopagã a um dos Numes (Endovélico de fora da Roda, com uma festa secreta), e nesse esquema Ategina tem o Lughnasad como o seu dia de festa particular, em seu aspecto de Senhora da Colheita.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Ategina, Semana 10: Oferendas
Nesta semana eu vou me autoplagiar e repetir o meu texto de 2014 referente à questão das oferendas, porque a natureza & propósito das mesmas segue imutável.
Começando pela questão mais imediata: porque fazemos oferendas de comidas e outros itens materiais aos Deuses, isso não é primitivo demais? Essa pergunta é bastante comum, não só fora das fés pagãs como no seio delas, e para responder a isso seria bom olharmos a sequência das versões da Liturgia da ADF -- no início a ênfase era em oferendas imateriais, geralmente música, canto ou poesia, sendo a resposta emocional dos participantes do rito às performances dos ofertantes parte essencial da oferenda, mas com o tempo a prioridade passou às oferendas materiais, e a declaração de membros da ADF a respeito mencionava várias razões para essa escolha: um afastamento deliberado da "imaterialidade" associada à espiritualidade judaico-cristã, antecedentes históricos e arqueológicos de oferendas em rios e lagos, e uma declaração enfática do valor intrínseco e sacralidade do mundo material e tudo o que ele contém. Claro, não é a substância material em si que Deuses, Ancestrais e Espíritos da Natureza levam da oferenda, mas a sua contraparte anímico-energética, juntamente com a devoção associada ao ato físico da oferenda.A outra pergunta que surge desta é a seguinte: os Deuses necessitam receber oferendas, há uma carência neles que a oferenda preenche? Se assim fosse, eles teriam todos perecido quando seus cultos foram terminados pelo monoteísmo predatório, o que não foi em absoluto o que ocorreu, como qualquer politeísta moderno pode confirmar -- a função da oferenda é exatamente a mesma de uma ou mais pizzas numa mesa cheia de amigos: uma troca de energia e presentes, um reforço dos laços de amizade, um pretexto para os participantes desses laços sentarem juntos em alegria. Nós não a vemos como um dízimo a ser pago, ou pior, como um jeito de comprar o favor divino e forçá-lo a acontecer em troca do que foi ofertado, como tantas igrejas modernas blasfemamente afirmam a seus rebanhos.
Então, as oferendas de pão, bolo, vinho, maçãs, rosas e (de vez em quando) romãs e queijo de cabra que faço a Ategina NÃO são superstição, sustento ou suborno, e se eu não as fizer Ela não será minimamente afetada -- o afetado serei eu, que estarei deixando de lado o procedimento testado e aprovado há milênios para estabelecer e reforçar os vínculos com a Divindade, e que recomendo expressamente a toda a gente.
segunda-feira, 31 de março de 2025
Ategina, Semana 9: Concepções Errôneas
O fato de Ategina, como tantas outras Divindades da Ibéria/Lusitânia, ter tão pouca representação arqueológica/histórica implica que muito do conhecimento relativo ao seu culto e à sua natureza permanecem desconhecidos (e não sabemos se essa situação será permanente); nesse contexto do não-saber, os achismos pululam para preencher a ausência dos achados.
Vimos algumas ideias muito estranhas sobre Endovélico há 10 anos, e o fato é que muitas delas só vieram a ser porque ele, em sua abundância desproporcional de inscrições e relatos dos tempos da ocupação romana, ocupou a atenção de muita gente (com muito tempo livre) até o início da Idade Média.
No caso presente já dissemos, e repetimos, que não há evidências de que Ategina seja uma Divindade lunar, e que certamente ela NÃO é a "deusa-mãe" do (inexistente) Panteão iberolusocéltico, e que não é 100% definido que a sua identificação com Prosérpina se fundamente em mais que uma ou duas características, então não temos como saber se essas concepções são erradas ou não, é tudo um imenso "pode ser" que nos faz arrancar os cabelos de frustração impotente.
E é isso, pessoal.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Ategina, Semana 8: Aspectos e Variações
Onde Endovélico tem uma natureza tripla, Ategina é dual.
O mito "emprestado" que associamos a Ela a mostra transitando entre este mundo e o Outro-Mundo, mas a sua passagem é direta e não parece apresentar a liminaridade Dele.
Na metade luminosa do ano, após o Equinócio da Primavera, Ela vem como a Senhora da Vida, a que traz consigo o despertar do longo sono do Inverno, coroada de flores e carregada de frutos; tudo o que Ela toca revive e rebrota, física e espiritualmente
...mas na metade escura do ano, o Equinócio de Outono marca a Sua jornada ao Outro-Mundo para a entronização como Rainha dos Mortos que se segue, portando a coroa de ossos e o manto negro; o mundo dos vivos chora a sua ausência e progressivamente se recolhe para o sono invernal, a introspecção e a meditação sobre o ano que se aproxima do fim ocupam os que aguardam o Javali que trará a Senhora e seu Consorte de volta do Mundo Profundo.
Flores e Ossos, eis a dupla natureza daquela que Renasce.
O mito "emprestado" que associamos a Ela a mostra transitando entre este mundo e o Outro-Mundo, mas a sua passagem é direta e não parece apresentar a liminaridade Dele.
Na metade luminosa do ano, após o Equinócio da Primavera, Ela vem como a Senhora da Vida, a que traz consigo o despertar do longo sono do Inverno, coroada de flores e carregada de frutos; tudo o que Ela toca revive e rebrota, física e espiritualmente
...mas na metade escura do ano, o Equinócio de Outono marca a Sua jornada ao Outro-Mundo para a entronização como Rainha dos Mortos que se segue, portando a coroa de ossos e o manto negro; o mundo dos vivos chora a sua ausência e progressivamente se recolhe para o sono invernal, a introspecção e a meditação sobre o ano que se aproxima do fim ocupam os que aguardam o Javali que trará a Senhora e seu Consorte de volta do Mundo Profundo.
Flores e Ossos, eis a dupla natureza daquela que Renasce.
segunda-feira, 17 de março de 2025
Ategina, Semana 7: Nomes e Epítetos
No projeto das 30 Semanas, está é a que mais se fundamenta em dados documentados a partir da arqueologia, os "achados" se contrapondo aos "achismos".
Ategina (ou Ataecina, ou Atægina) tem 36 inscrições conhecidas até agora (lembrando que Endovélico tem o recorde absoluto de 72), das quais 15 são de Santa Lucia del Trampal, em Cáceres, na Espanha, onde aparentemente seu culto era associado ao sal, assim como no Monte de São Lourenço em Braga; outros locais arqueológicos são Elvas e Beja em Portugal, Mérida e Mértola na Espanha, e a região do Rio Guadiana, e datam do início da colonização romana até meados do século III dC (estas últimas em Alcuéscar, na Espanha), incluindo-se as invocações Dela para encontrar objetos roubados e salvar doentes graves que foram achadas em Vila Viçosa.
As grafias diferentes de seu nome provavelmente são devidas à ausência de uma grafia romana padronizada para as Divindades nativas (mas, como já vimos no caso de Endovélico/Andevélico/Enobolico, poderiam ser aspectos cultuais chamados por nomes diferentes).
Ela é chamada de Dea ("Deusa"), Domina ("senhora"), Santa ("santa"), mas esses títulos são genéricos e partilhados com outras Divindades; o que parece ser o epíteto mais exclusivo Dela é o ATAEGINA TURIBRIGENSIS PROSERPINA, ilustrado acima, que apresenta no meio do sincretismo típico da interpretatio romana o atributo local "de Turóbriga" que, como já vimos, se refere a uma cidade que, embora amplamente descrita em outras fontes, ainda não teve sua real localização encontrada.
Mas, para encerrar com um "achismo" meu, me parece adequado partilhar com Ela a expressão do poder de Endovélico enquanto Divindades ctônicas que são: EX IMPERATO AVERNO, "pela determinação emanada das profundezas".
Ategina (ou Ataecina, ou Atægina) tem 36 inscrições conhecidas até agora (lembrando que Endovélico tem o recorde absoluto de 72), das quais 15 são de Santa Lucia del Trampal, em Cáceres, na Espanha, onde aparentemente seu culto era associado ao sal, assim como no Monte de São Lourenço em Braga; outros locais arqueológicos são Elvas e Beja em Portugal, Mérida e Mértola na Espanha, e a região do Rio Guadiana, e datam do início da colonização romana até meados do século III dC (estas últimas em Alcuéscar, na Espanha), incluindo-se as invocações Dela para encontrar objetos roubados e salvar doentes graves que foram achadas em Vila Viçosa.
As grafias diferentes de seu nome provavelmente são devidas à ausência de uma grafia romana padronizada para as Divindades nativas (mas, como já vimos no caso de Endovélico/Andevélico/Enobolico, poderiam ser aspectos cultuais chamados por nomes diferentes).
Ela é chamada de Dea ("Deusa"), Domina ("senhora"), Santa ("santa"), mas esses títulos são genéricos e partilhados com outras Divindades; o que parece ser o epíteto mais exclusivo Dela é o ATAEGINA TURIBRIGENSIS PROSERPINA, ilustrado acima, que apresenta no meio do sincretismo típico da interpretatio romana o atributo local "de Turóbriga" que, como já vimos, se refere a uma cidade que, embora amplamente descrita em outras fontes, ainda não teve sua real localização encontrada.
Mas, para encerrar com um "achismo" meu, me parece adequado partilhar com Ela a expressão do poder de Endovélico enquanto Divindades ctônicas que são: EX IMPERATO AVERNO, "pela determinação emanada das profundezas".
segunda-feira, 10 de março de 2025
Ategina, Semana 6: Panteão
Volto a dizer o que postei antes, não existe um "panteão" propriamente dito na Ibéria (as poucas associações de Divindades historicamente atestadas são a tríade Bande-Nabia-Reve e a dupla de irmãos Arentio-Arentia, e é só), assim deixo claro que o coletivo de Divindades do meu culto pessoal nunca foi cultuado originariamente do modo que faço, desde que todos vêm de lugares e povos diferentes.
Tendo mencionado Endovélico na semana passada, agora vou falar de outros Deuses e Deusas "revelados" a mim pelo livro "A Voz dos Deuses", começando por Tongoenabiago, o deus da Fonte do Ídolo em Braga (o que sugere que ele era cultuado por meus ancestrais diretos, já que meu avô paterno veio de lá), cujo nome vem de uma raiz céltica significando "juramento", que sugere que havia o costume de se jurar pelas águas da fonte, com Tongoenabiago como testemunha do juramento; eu intuo como seus atributos o cão, a cor branca, o grou e o amieiro, e como objeto ritual o cálice.
Coaranioniceus é outro, desta vez na região do Monte Santo de Olisipo, hoje o Parque de Monsanto em Lisboa: alguns o associam ao chamado "Ares Lusitano", deus guerreiro a quem se sacrificavam cavalos, bodes e prisioneiros de guerra, e também como regente das minas de ouro e metais da região, e assim eu o vejo como senhor da abundância e da guerra, com o cavalo e o vento (uma lenda registrada pelos cronistas romanos fala da manada de cavalos sagrados, nascidos de éguas fecundadas pelo vento, que ali viviam) como seus atributos.
Runesocesios ("do mistério da lança"), cultuado em Évora, a mim sugere um guerreiro mais feroz que Coaranioniceus, com sua lança sendo o raio dos céus, e regendo o carvalho, o touro e a espada.
Bandua, padroeiro dos bandos de guerreiros unidos por votos sagrados, é às vezes chamado "o que ata" e uma imagem recém-encontrada, supostamente dele, o mostra com uma corda atada à volta do peito como símbolo desse vínculo; gamo, teixo e corvo são para mim consagrados a ele, que é um dos raros cultuados em diversas localidades, com títulos anexos ao nome como Banderaiecos, Bandioilenaico, Bandueaetobrigos, etc, etc...
Trebaruna, "mistério da casa", é a guardiã do lar (e ligada ao fogo da lareira) e a protetora dos heróis, tocha numa mão, lança na outra, carneiro, pássaro-preto e sorveira como atributos -- Leite de Vasconcelos escreveu muito sobre ela, tanto textos acadêmicos como poemas, e ela foi divulgada ao mundo quando o grupo Moonspell compôs uma música em homenagem a ela, o que a torna uma das Divindades mais conhecidas fora de Portugal.
As duas Deusas que se seguem não são mencionadas por nome no livro de João Aguiar, mas se impuseram a mim de modo difícil de recusar...
A Deusa da Serra da Lua, em Sintra, se manifestou a mim vestida de negro e velada, com a lebre, coruja e salgueiro como seus atributos; o nome que me veio foi Cintia, o antigo nome de Sintra, mas ela avisou que tinha outro nome que mais tarde eu descobriria, e agora a conheço como Iccona.
A Deusa da Serra da Estrela, ou os Montes Hermínios, se apresentou como Hermínia (mas disse que não era "exatamente" assim o seu nome, que anos depois li num artigo sobre os Celtas da Ibéria como Erbina), associada por mim ao urso, falcão e bétula.
Além dos Nove, eu cultuo ao trio Bande-Nabia- Reve como os guardiões do Centro Triplo da liturgia da ADF (Fogo, Poço, Árvore/Monte) e às Matres como a base subjacente da Criação.
E assim meu culto pessoal é mantido.
segunda-feira, 3 de março de 2025
Ategina, Semana 5: Família
Continuando com o tema "não sabemos nada sobre as Divindades da Ibéria/Lusitânia com certeza histórica, mas..." eis que chegamos em outro ponto questionável.
Endovélico é mesmo o consorte de Ategina?
Autores há que fazem o seguinte raciocínio: se Ategina é sincretizada com Prosérpina, e Endovélico é o Senhor dos Mortos, então ele é Plutão, e então é o cônjuge dela -- como vocês podem ver, o argumento depende da interpretatio romana descrever acuradamente (ou não) o caráter dela, e aí postular um outro sincretismo não-atestado historicamente, e aí misturar a salada muito bem e rezar para que o prato seja minimamente palatável.
Outro argumento é baseado na descrição dela como sendo uma Deusa da cura e dos mortos, e ver na identidade de funções entre ambos uma associação/pareamento...só que eu AINDA não encontrei uma base documental que prove que as pessoas rezavam a Ategina pela cura própria ou de familiares (pedidos de vingança e/ou maldição existem às mancheias, mas isso é outra história)
Outro possível argumento seria de contrapor o aspecto solar de Endovélico ao aspecto lunar de Ategina, mas nem preciso falar da falta de comprovação disso (e, mesmo como UPG, eu tenho dificuldade em perceber essa suposta "lunaridade" dela)
...mas, tendo feito esta desconstrução em regra dos argumentos que os autores modernos criaram, devo dizer que SIM, para mim Eles são um casal Divino, e o único motivo pelo qual eu acredito nisso é um explícito e desavergonhado "porque sim".
domingo, 2 de março de 2025
Carnaval, Quaresma & Outros Horrores (ou não)
"Ain, o Carnaval é uma energia muito densa/ deixa a aura carregada/ só atrai entidades negativas e ligadas à matéria/ gente espiritualizada DE VERDADE não participa disso/ etc, etc, etc"
Eu entenderia se esses comentários rançosos viessem do puritanismo dos Cristãos (esses dias quase que só se fala disso nas páginas catolicrentes das redes), mas nunca deixa de me chocar a presença desse chorume conceitual no meio Pagão/esotérico, e parece que a cada ano fica pior.
O que acontece se olhamos para o Carnaval com olhos-de-druida?
Começamos por ver que o tríduo momesco, para usar seu nome mais empolado, é o exemplo clássico do que a Antropologia chama de "período de reversão": festividades que, desde a antiguidade clássica e o medievo, promovem uma ruptura temporária das estruturas sociais estabelecidas enquanto o evento durar -- homens se vestem de mulher (e vice-versa), servos se sentam à mesa do banquete e são servidos por seus senhores, bêbados fazem sermões nas igrejas e os clérigos cantam canções profanas nas tabernas, e por aí vai, e no dia seguinte tudo volta ao normal, as pessoas exaustas mas estranhamente aliviadas, como se essa ruptura tivesse purgado as tensões e frustrações acumuladas ao longo do ano e destravado as neuroses pessoais e coletivas por elas causadas.
É um tempo de perigo, sim, mas a liberdade caminha lado a lado com ele: vai que a reversão extravase para além do terceiro dia, e a Ordem dê lugar ao Caos (como acabou acontecendo na Veneza renascentista, onde era Carnaval por quase metade do ano, e ninguém mais andava nas ruas sem as máscaras elaboradas que viraram símbolos do Carnaval de Veneza).
É uma energia densa, sim, mas não é mil vezes melhor excretá-la do organismo psicofísico do que fingir que ela não existe e deixá-la fermentando pestilência nas almas? Qualquer miasma que reste na atmosfera é eventualmente metabolizado pela Terra, que sabe muito bem que nem toda densidade é intrinsecamente nociva desde que esteja em seu devido lugar.
É uma festividade essencial para a saúde mental/espiritual do indivíduo/coletividade, e execrado seja quem a declara anátema.
...e agora eu vou fazer uma proposta que vai soar herética para Cristãos e Pagãos ao mesmo tempo...
A Quarta-Feira de Cinzas, o fim do Carnaval, marca o início da Quaresma, o período que antecede a Páscoa e que é caracterizado por pequenas penitências autoimpostas como preparação para a Paixão de Cristo -- isso é a prática católica tradicional dos últimos dois milênios, e não há nada novo nisso, mas os olhos-de-druida não podem deixar de ver paralelos desse costume com o conceito druídico do geis, do qual já escrevi em outra ocasião -- bem, e se nós, Druidistas, utilizássemos este período para trabalhar com os geasa, escolhendo uma privação ou obrigação voluntária e temporária (até o Equinócio, talvez?)
Minha teoria é que, após a purificação trazida pelo Carnaval, a alma (ou as Três Almas) pode ver as coisas com mais clareza, e a disciplina implicada nos geasa neste período em especial pode fortalecer os propósitos da tríplice alma de modos que não seriam possíveis em outras fases do ano.
Assim sendo, em consonância com a Inspiração /|\ , eu proclamo o Tempo dos Votos, entre a exaltação da Festa da Reversão e a celebração do Equinócio da Colheita, e convido quem quiser participar comigo
(porque o bom herege sempre divide a culpa com quem cruzar seu caminho...)