segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Endovélico, Semana 20: Arte Evocativa

Com a complexidade simbólica vista ao longo desta jornada, na qual já percorremos 2/3 do caminho, eu procurei -- e encontrei -- centenas de imagens evocativas de Endovélico em seus vários aspectos, mas dentre elas esta foi a que mais poderosamente ressoou em mim como um retrato do deus: uma pintura (cujo autor, infelizmente, desconheço) representando Esculápio, a sua contraparte romana, mas que, longe do estereótipo da imagem austera e dignificada no mais imaculado mármore, o mostra de modo decididamente ctônico, mediando os poderes da Morte e da Vida com o bastão das serpentes, simultaneamente heróico e terrível como só ele sabe ser...e é esse retrato que partilho, aqui,
com quem me lê.


(PS: JP me informou que a autora da obra "Asclepius" se chama Carrie Ann Baade ;-) )

domingo, 16 de novembro de 2014

Endovélico, Semana 19: Qualidades

O perfil de Endovélico traçado ao longo destas semanas apresenta a liminaridade como traço principal: entre Vida e Morte, Saúde e Doença, Sonho e Vigília, oscilando entre gêneros e espécies e pareando com as divindades mais diversas possíveis, ele não se limita a uma única imagem, mas está sempre em fluxo.
Sendo assim, penso que não será estranho para ninguém que eu declare que a mesma qualidade que admiro é a mesma que considero a mais difícil de todas...
A imagem acima é o símbolo perfeito desta situação ambivalente: essa erva de folhas longas e flores roxas, se aplicada externamente, é um cicatrizante poderoso que fecha cortes e feridas em dias e cura todo tipo de erupções e problemas dermatológicos, mas se for ingerida é extremamente hepatotóxica e pode até matar por hepatite medicamentosa fulminante -- o confrei, poderoso para curar e/ou matar de acordo com o conhecimento e prudência de quem o prepara.
Esse é só o exemplo mais ilustrativo da questão que discutimos agora: Endovélico vem me ensinando, ao longo destes anos, que a doutrina de Paracelso da identidade essencial entre remédios e venenos, dependendo do contexto/dose, na verdade se estende também a métodos não-farmacológicos como as técnicas psicoterápicas, assim como a abordagens mágico-rituais, e essencialmente a toda coisa ou ação humana -- coisas aparentemente inofensivas do dia-a-dia podem causar danos a médio/longo prazo, assim como outras coisas que o consenso chama de perigosas tem potenciais curativos se aplicadas no local e na hora certa.
Percebem o que digo? Estamos, todos nós, vivendo num mundo de maravilhas ocultas e terrores escondidos a cada passo que damos, e na imensa maioria das vezes invocamos seus efeitos sobre nós sem saber o que fazemos e quais conseqüências virão disso, e cumulativamente nos tornamos, nós mesmos, terapêuticos e venenosos para o mundo à nossa volta!
E o único fator que permite curar com o veneno é a discriminação consciente, o avaliar a cada ação como exercê-la do modo adequado à situação, local e pessoa envolvida, sabendo que o que funciona em outros contextos nem sempre se aplica àquela situação específica, e que muitas vezes é preciso deixar o veneno agir por um tempo até que seja transmutado em medicina, e que essa responsabilidade é pesada demais para ser carregada impunemente -- mesmo esse fardo me intoxica agora para sanar depois, pois é o preço pelo conhecimento e o dom da cura verdadeira, que nunca exerço sozinho, porque Endovélico me acompanha a toda parte.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Endovélico, Semana 18: Gênero e Sexualidade


Nesta semana a questão se refere a como os temas do título se expressam no culto de Endovélico,  o que é menos simples do que parece à primeira vista -- normalmente se pensa que divindades guerreiras tendem a ter devotos masculinos e as Deusas-Mães a devoção das mulheres, mas como isso se aplica ao nosso deus?
Como já vimos, há uma quantidade relativamente grande de inscrições em altares ofertados como ex-votos a Endovélico, e boa parte deles foi "assinada" pelos seus doadores; mais homens que mulheres fizeram estas oferendas, mas elas perfazem 33% do total, uma porcentagem muito acima da encontrada para outras divindades, mesmo para as deusas; é possível que a porcentagem real fosse ainda maior, levando-se em conta que a amostragem das inscrições disponíveis é limitada e distorcida, e levando em conta que Esculápio/Asklépios, a sua contraparte greco-romana, tinha um culto majoritariamente feminino e de todas as classes sociais, incluindo escravos e estrangeiros -- o que faz sentido, levando-se em conta que a benevolência do Curador é um artigo de alta demanda, independentemente de gênero, idade e classe social, e que seria natural que fossem as mulheres a pedir pela saúde de seus pais, maridos ou filhos no santuário do deus (mesmo que muitos maridos apareçam pedindo por suas esposas ou filhas).

(Uma GPN minha, que menciono aqui pela primeira vez, é que eu às vezes percebo a face do Oráculo como sendo feminina, em contraponto com a masculinidade do Curador e de uma certa androginia na criança alada que retrata o Psicopompo em imagens de São Miguel da Mota -- a liminalidade do deus permite que ele flua entre os gêneros de acordo com a necessidade).
Obviamente um deus da cura vai obrigatoriamente lidar com as questões da sexualidade, como alguns ex-votos de cerâmica do Asklepeion de Epidauro (em forma de seios, genitais masculinos e femininos) indicam -- não temos relatos escritos do lado Ibérico ou ex-votos similares, mas a natureza humana sendo a mesma em todas as partes, só podemos concluir que o santuário de Endovélico era similarmente procurado nestes casos.
Mas e quanto à sexualidade em si, fora do campo da saúde reprodutiva? Alguns autores consideram que a Ibéria, pré-romana e romana, seria um "centro sexual" para todo o Mediterrãneo (mencionando que o imperador Adriano e os poetas Juvenal e Marcial seriam ibéricos, o que "justificaria" seus comportamentos tão bem registrados pela História...)-- não temos registros antes da conquista romana, mas Roma foi muito bem descrita em crônicas como sendo simultaneamente austera/puritana e lasciva, oscilando entre um e outro extremo de acordo com o período histórico, o Imperador regente, ou as modas que surgiam e sumiam entre seus cidadãos; podiam não ver com bons olhos orgias coletivas (e certamente ficariam horrorizados se soubessem que é exatamente assim que são representados na imaginação popular moderna!) mas não sofriam do fanatismo negador da carne que a Cristandade traria ao mundo, e embora, diferentemente do que se crê hoje, não "aceitassem" a homossexualidade no contexto em que nós entendemos o termo, pelo menos tinham por ela uma tolerãncia bem-humorada que até podia incluir sátiras ocasionais, mas não anátemas.
(Devo mencionar que escrevo esta Semana após celebrar o Beltane com o Ramo de Carvalho, neste sábado passado?)


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Endovélico, Semana 17: Relações com Outros Panteões


Esta semana talvez seja polêmica, por tocar na questão delicada de se a semelhança entre Divindades de panteões diferentes significa identidade, o que foi a base da famigerada interpretatio romana e todas as conquistas e confusões que ela nos trouxe...
Começamos pelo sincretismo básico já estabelecido de Endovélico com Esculápio, discutido à exaustão em semanas anteriores, e que embora nos revele muito sobre nosso deus, também oculta -- já vimos uma interpretação errônea que o identificava com Cupido, e também vimos que ele teria tudo para ser correlacionado com Plutão (como Senhor dos Mortos) ou Apolo (Curador/Oráculo), mas essa associação não ocorreu.
Não há registro histórico de sincretismos dele com Divindades de outros panteões (exceto em um caso muito especial, a ser discutido mais à frente); no entanto, sem compromissos com a História, com quem associaríamos Endovélico?
Entre os Deuses do Egito, Tehuti seria uma escolha pelo lado do Oráculo/Curador, mas o Senhor dos Mortos teria mais a ver com Ausar , morrendo e revivendo com os ciclos do Nilo, recebendo as almas diante de seu trono no Amenti.
Não consegui, por mais que tentasse, uma correlação plausível com nenhum dos Deuses dos Nórdicos -- poder-se-ia pensar em Odin auto-imolado na árvore Yggdrasil para obter as Runas, mas é uma associação muito frágil e estreita para ser de algum valor.
No caso dos outros Celtas além da Celtibéria, os Gauleses teriam os Curadores Bormanicos e Grannus e o ctônico Dis Pater como candidatos, com o agravante de seus mitos nos serem desconhecidos; na Irlanda já encontramos Miach, filho de Diancecht, cujo mito espelha o de Esculápio, e em Gales o sombrio Arawn, rei das profundezas do Annwn, seria uma opção viável.
E quanto ao "caso muito especial" mencionado acima?
Por mais que eles estrebuchem quando se diz isso, os Católicos têm um verdadeiro panteão, com culto a Divindades secundárias (os Santos e Anjos), à Trindade, e à posição exclusiva da Virgem como sinais característicos; já vimos que tradicionalmente o Arcanjo Miguel é consagrado nas colinas que ostentavam cultos pagãos, e o santuário de São Miguel da Mota é o exemplo no caso de Endovélico -- mas, como já discutimos em outra ocasião, o Guerreiro Luminoso e o Dragão Sombrio são duas faces inseparáveis do mesmo mito, e assim Miguel e a Serpente poderiam ser entendidos como os lados solar e ctônico de Endovélico.
Mas ainda há mais: alguns pesquisadores consideram que o culto a Santo Antão seria uma sobrevivência cristã do de Endovélico...um santo curador, acompanhado de um porco, fazendo sua ermida numa tumba de um cemitério abandonado cheio de serpentes, onde os peregrinos se sentavam ao lado da tumba para buscar o conselho do eremita e sua voz vinha lá de baixo -- se isso não evoca o EX IMPERATO AVERNO não sei o que o fará!
E como se isso não bastasse, os cultos familiares da Bruxaria Tradicional Ibérica levam o simbolismo às últimas consequências, encobrindo Endovélico sob a face do Curador e Ressuscitado por excelência, chegando a adornar crucifixos com símbolos do culto original e efetivamente transfigurando-os em ícones do antigo deus à imagem do novo.
Quanto dessas relações de similaridade são formas válidas de representação do deus, mesmo não sendo autênticas, depende de como aquele que contempla as imagens as vê como portais que conduzem, por vias mais ou menos tortuosas, à presença Dele...