quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Endovélico, Semana 16: Valores do Panteão


Como já vimos, não existiu um panteão unificado das tribos celtibéricas/lusitanas, e como mencionei em outra ocasião, as culturas pagãs tendiam a ver a ética como sendo algo encorajado pelas Divindades, mas de criação puramente humana -- assim sendo, penso que uma boa olhada no povo que cultuava Endovélico pode nos ajudar a definir os seus valores morais para assim responder a questão: de que modo Endovélico reflete os valores éticos da cultura de seus devotos?
Os cronistas romanos descreveram os Lusitanos como "um povo que não se governa nem se deixa governar", independentes mas indisciplinados, como os Celtas de todas as partes da Europa sempre foram, razão pela qual o Javali foi subjugado pela Águia -- um herói autocontrolado e estratégico como Viriato é a exceção que confirma a regra, e mesmo ele precisou esperar que seus companheiros sitiados na Turdetânia desesperassem, pois só assim se submeteriam ao seu comando sem discutir.
Um povo frugal e austero, profundamente religioso, dormindo no chão sobre seus mantos negros, comendo pão de bolota de carvalho e bebendo água ou cerveja de trigo, saindo da floresta em ataques-relâmpago e voltando velozmente a ela, ferozes e indomados como javalis selvagens: fica evidente a admiração relutante dos cronistas por essas virtudes rústicas, que comparadas aos modos decadentes de Roma pareciam ainda mais admiráveis e dignas de louvor.
Maurício Pastor Muñoz, em seu livro, descreve Viriato como sendo livre do que Jean Markale chamou de "os três pecados do guerreiro", cada qual atentando contra uma das três funçôes sociais indo-européias: saque (3a. função, provedores), vingança (2a. função, guerreiros), usurpação (1a. função, nobres) -- Viriato repartia o saque dos vencidos entre suas tropas e não se apropriava de nada, combatia com premeditação com o objetivo de libertar seu povo, e não cedeu à tentação de se proclamar rei apesar da aclamação do seu exército (ironicamente, essa tripla vitória só confirmava sua aptidão para o trono...)
Poderíamos dizer, forçando um pouco, que Viriato encarna o aspecto Psicopompo de Endovélico ao conduzir com habilidade as diversas tribos ao seu destino, o Oráculo ao usar e abusar da oratória para orientar o povo, como na parábola do homem-das-duas-esposas, e o Curador, ao fazer de tribos dispersas uma única nação (e mesmo seu assassinato o promove a Senhor dos Mortos, se a grandiosidade dos festejos fúnebres a ele dedicados for evidência).
Mas a associação não funciona bem, por um motivo crucial: diferentemente de muitas outras Divindades da Ibéria (Runesocesios, Bandua, Neton, Reve, etc.) Endovélico não apresenta uma face guerreira e extrovertida, seus dons induzem ao recolhimento e contemplação, e isso indica, a meu ver, um possível culto de mistérios exclusivo da casta sacerdotal e centrado nele, algo não "popular" mas coexistindo com a evidente devoção de gente de todas as classes ao Muito Bom.
Resumindo, mesmo que existisse um panteão ibérico unificado, o mais provável é que Endovélico fosse como o salmão, nadando na contramão dos outros peixes...

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Endovélico, Semana 15: Aspectos Mundanos



Um ponto presente nas fés pagãs como um todo é a crença na imanência divina, ou seja, na presença ativa das Divindades no mundo, diferente da visão monoteísta de um deus transcendente habitando um plano superior e vendo o mundo do lado de fora; os Deuses antigos habitam tanto o mundo natural e seus sempre variados fenõmenos quanto as culturas humanas em suas inúmeras manifestações.
No caso de Endovélico, cujos títulos incluem "presentíssimo", está claro que ele nunca está longe daqui, nem mesmo quando assume a face do Muito Negro e se torna o Senhor do Reino dos Mortos -- mas ele pode ser contatado sem ser por meio das devoções em seus altares domésticos? Qual é o aspecto mundano da sua presença?
Em nossa sociedade, a face do Curador é a mais fácil de encontrar, e não digo apenas nos hospitais, pronto-socorros e faculdades de medicina: qualquer um que faça uma infusão de canela com mel para tratar um resfriado está expressando a natureza do deus em suas ações sem necessidade de títulos oficiais ou ritos iniciáticos. A grande variedade de revistas, sites e programas dedicados à saúde, a onipresença das academias de ginástica, todos esses canais estão transmitindo a sua influência à sociedade como um todo, e as pessoas nem se dão conta disso.
A face do Oráculo é mais restrita, e não me ocorrem outros exemplos além dos consultórios de psicoterapia, em especial das vertentes que rrabalham com os sonhos.
Quanto ao Psicopompo/Senhor dos Mortos, o tabu da morte ainda impede a sua presença de modo mais direto do que em clínicas para pacientes terminais, velórios, necrotérios e cemitérios, e uma necessidade de nossa cultura é restaurar a posição da Morte como um fato a ser recebido com dignidade e serenidade, não um terror ao qual esconder sob o tapete e fingir que é algo que só acontece aos outros.
Agora que viram como é fácil encontrar os Deuses, vão procurar por aí e vejam a quem encontram no caminho...


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Endovélico, Semana 14: Culto Moderno

Alguns de nós, no meio Pagão, nos denominamos Reconstrucionistas, ou seja, nosso objetivo é reconstruir com a maior fidelidade possível os cultos antigos, baseados em evidências da arqueologia, história, linguística e religião comparada, e adicionando a isso as GPNs que não contradigam os achados objetivos acima citados -- mas a idéia não é reviver o culto-como-era-então, incluindo aí sacrifícios animais e/ou humanos e outros anacronismos autênticos mas não mais válidos para a nossa época: a idéia por detrás dos Recons mais sensatos é tentar imaginar como seria se o culto tivesse sobrevivido à romanização e à cristianização do mundo antigo e viesse evoluindo pelos séculos até os dias de hoje, ou seja, fazer o culto de uma forma adequada ao século XXI.
É por isto, entre outros vários motivos, que eu não sacrifico pombos vivos, que dirá javalis, a Endovélico em meu altar doméstico.
Como disse antes, o culto diário implica em orações e oferendas às Divindades de meu panteão pessoal, Endovélico entre elas sem destaque (mas com orações exclusivas a ele ao acordar, meio-dia, pôr do sol e ao deitar); a cada nove dias (o último foi ontem), o culto e as oferendas enfatizam Endovélico em seu dia, com vinho e louro em seu altar.
Eu uso o formato ritual básico da ADF, com invocações ao Centro Sagrado, às Três Famílias, a abertura do Portal e as Invocações antes das Oferendas, com uso do Oráculo para saber se foram aceitas e que dons me foram dados em troca, e encerramento formal, e nos dias de Endovélico isso implica em invocações e oferendas mais complexamente executadas (incluindo o uso do Celtibérico) -- após tantos anos, as ações rituais fluem de modo quase automático, o que deixa a consciência livre para ficar em modo contemplativo e sentir os tempos corretos para cada ação, bem como traduzir o Oráculo do modo mais preciso possível.
A presença do deus é inequivocamente sentida quando a Invocação é feita e as Oferendas apresentadas, quem já o fez sabe muito bem do que falo, aos outros só aconselho tentar...

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Endovélico, Semana 13: Relevância Atual


Depois desta exposição sobre Endovélico e seu culto, a pergunta surgindo na mente dos leitores é essa: muito bem, mas qual é a relevância disso tudo nos dias de hoje, porque reviver um culto esquecido de uma época e cultura ainda mais obscuras, qual o propósito disso? Essa pergunta tem dois níveis, o geral e o específico, e vou responder separadamente a cada um deles.
No plano geral, a razão pela qual pessoas de todas as nações, classes, culturas estão revivendo os antigos cultos politeístas é multiforme -- as religiões oficiais, incluídas aí a ciência e as ideologias políticas, já não dão mais conta da necessidade humana universal por sentido, valor e propósito da existência (diga-se de passagem, não pela primeira vez na história), e todas as vezes em que isso aconteceu as pessoas olharam para o passado e lá redescobriram uma pureza de crença e vitalidade de devoção que foram potentes o bastante para preencher as almas desses buscadores insatisfeitos; outros fatores, como a identificação com a cultura dos ancestrais desses buscadores, ou nostalgia por épocas em que a vida era menos complicada e mais heróica, ou a influência da ficção/fantasia, tem o seu peso aqui, mas a motivação fundamental vem do fato de que nem só de pão vive o homem, há necessidades espirituais que devem ser satisfeitas sob pena da morte-em-vida que vem caracterizando, cada vez mais, a paisagem anímica do mundo moderno.
No plano específico, porque Endovélico? Num mundo em que a medicina ganhou poderes inimagináveis de enfrentar doenças antes incuráveis e prolongar a vida, mas às custas de um pavor crescente da morte e uma recusa em aceitá-la como parte indissolúvel da existência, em que medicamentos novos prometem a cura ao preço de novos males e reações adversas, em que as doenças da mente são agora tratáveis, mas desde que se diga que a "alma" é meramente um circuito neuronal passível de conserto farmacoquímico -- em um mundo assim, não é evidente que o Curador, Oráculo e Psicopompo são mais do que nunca necessários, que as antigas e eternas verdades das relações sutis entre o corpo e a mente, da identidade essencial entre remédio e veneno dependendo do contexto, de que a morte pode ser em si mesma uma cura e uma libertação, precisam ser urgentemente redescobertas e aplicadas num mundo que deixou de ser são mas já não sabe mais como adoecer do modo correto?
E vejam bem, ambas as respostas acima são meramente humanas, centradas nas necessidades e nas ações puramente humanas -- mas os Deuses, Endovélico entre eles, são indivíduos dotados de razão, vontade e propósito, e a iniciativa do contato é no mínimo tanto deles quanto nossa; eles têm deixado bem claro, de vários modos, que estão interessados em voltar a fazer parte de nossas vidas, mas agora em bases menos desiguais, pois o mesmo desenvolvimento cultural que num primeiro instante nos afastou deles também nos deu os meios para que agora possamos compreendê-los melhor e, de modo livre e consciente, renovar as antigas alianças para o bem de nosso mundo.