segunda-feira, 28 de julho de 2014

Endovélico, Semana 3: Símbolos e Imagens


A maioria dos símbolos consagrados a Endovélico vem da iconografia atestada em altares e inscrições, alguns são dedutíveis da interpretatio romana e seu sincretismo imposto, e uns poucos são GPN...
Começando pelos animais, o mais característico dele é o Javali:


que é um dos retratados num de seus altares, e que talvez esteja ligado às imagens dos berrões de pedra do norte de Portugal.
A Pomba aparece numa estátua achada no santuário de São Miguel da Mota, talvez de um sacerdote ou devoto, trazendo uvas numa mão e uma pomba na outra:


O terceiro animal é uma dedução, minha e de outros, baseada no sincretismo romano com Esculápio, ou seja, a Serpente:


(notem que os três sugerem os Três Mundos célticos, Terra/Javali, Céu/Pomba e Mar/Serpente (ou rio, como veremos mais tarde)).
Das plantas, os altares apresentam a Palmeira (uma folha), o Louro (uma coroa) e o Pinheiro (uma pinha), além das Uvas como oferenda:





Pela dupla natureza solar/ctônica que lhe é atribuída, outros símbolos são o Sol (o lado de Esculápio/Apolo) e a cor Negra (uma versão do seu nome, Enobolico, é traduzível como "o muito negro"):



(eu intuo que o símbolo que une ambos os aspectos é o Sol Negro, o Sol durante um Eclipse):


O que nenhuma imagem mostra, e eu só intuo, são os objetos rituais consagrados a ele -- o Bastão da Serpente, pelo simbolismo esculapiano, e a Faca Sacrificial, pelo lado sacerdotal de estar no limiar entre vida e morte, Mundo e Outro-Mundo:



Quanto a imagens, a que abre este post é uma cabeça de uma escultura, atualmente no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa, visivelmente romanizada e feita para se assemelhar ao Esculápio romano, mas eu gostaria de mostrar esta, obviamente moderna, feita pelo meu amigo Everson Romero:


Estes são, por enquanto, os símbolos que expressam melhor os aspectos do deus, e fará bem quem meditar neles como modo de contactar sua presença.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Endovélico, Semana 2: Primeiro Contato

Tendo chegado ao Druidismo após algumas idas e vindas,  quando cheguei para ficar encontrei a questão de qual dos panteões Celtas cultuar -- os Deuses da Irlanda eram aqueles com mais referências históricas e mitológicas, claro, mas apesar disso e da minha estima por eles eu não me sentia realmente "em casa" ali; as Divindades da Gália pareciam me chamar mais para perto, mas a carência de mitos pelos quais conhecê-las era um obstáculo sério. Sabia que os Celtas habitaram a Península Ibérica por milênios, mas naqueles tempos antes da Internet não pude saber quase nada sobre eles e seu culto, então essa opção nem tinha me ocorrido como uma possibilidade séria.
Foi então que, em 1996, durante férias em Portugal, numa feira de livros na praça em Cascais, eu encontrei o livro que iria me apontar a direção a seguir-- A Voz dos Deuses, de João Aguiar: um romance histórico centrado em Viriato e sua época, narrado por um de seus companheiros de guerra, na velhice consagrado sacerdote do deus Endovélico...e foi aí que, pela primeira vez, eu vi o nome Dele, e referências ao seu culto no outeiro de Arcóbriga, mais tarde São Miguel da Mota, e seus dons de cura, sonhos e condução das almas ao Outro Mundo; também ali encontrei as outras Divindades cultuadas no mesmo período, como Tongoenabiago, Trebaruna, Ategina e outras, que vieram a compor o meu panteão pessoal, e todas as fontes históricas e arqueológicas comentadas no Apêndice do livro, mas foi Endovélico que ressoou em minha alma de modo mais direto e persistente, estabelecendo o vínculo que perdura nesta vida e para além dela.

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segunda-feira, 14 de julho de 2014

Endovélico, Semana 1: Introdução


Para começar este ciclo de trabalhos e meditações, gostaria de dar uma idéia básica sobre Endovélico para quem O não conhece (o que inclui 99,9% das pessoas, não tenho ilusões a respeito...)
Ele é a mais conhecida Divindade dos Celtas da Península Ibérica, e uma das quais chegou até nós porque os Romanos adotaram seu culto quando ali chegaram; na verdade, todas as inscrições dele são do período romano-ibérico, escritas em Latim, geralmente ex-votos deixados por um devoto em agradecimento por graças obtidas -- e foi justamente essa fama, de conceder graças de cura de doenças ou oráculos a consulentes, que o tornou famoso e manteve seu culto até a cristianização no século V dC, quando seus santuários foram abandonados (ou, como ocorreu no outeiro da Mota, convertidos em igrejas cristãs dedicadas a São Miguel) e esquecidos.
Foi o trabalho de J. Leite de Vasconcelos, historiador e arqueólogo português, que revelou ao mundo os santuários esquecidos dos Deuses Antigos da Ibéria e Lusitãnia, e o nome das Divindades ali cultuadas: quem visita o Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa pode ver os altares e imagens tiradas das escavações do santuário de Terena.
E, como disse no post anterior, o culto a Endovélico está sendo revivido aos poucos, e mesmo agora já congrega gente bastante para atrair o interesse turístico da prefeitura do Alandroal, que todo ano promove uma semana de debate arqueológico e festividades mais ou menos pagãs, culminando este ano com o rito celebrado pela ordem Wicca Celtibera (de quem desavergonhadamente tomei a imagem do post)sábado passado.
Porque essa é a questão: sabemos de Endovélico (ou dos outros Deuses de sua terra) apenas o que a arqueologia, a etnografia, a linguística e a religião comparada nos permitem saber, e o resto é obrigatoriamente fruto de imaginações, cuidadosamente alimentadas pelas fontes que citei, e sobre as quais, se temos sorte, a Inspiração desce e vivifica como possíveis ritos, preces e devoções praticáveis nos nossos dias; até onde chegamos, nós, devotos do "deus presentíssimo e prestativíssimo", as próximas semanas, assim espero, mostrarão.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

30 Semanas para Endovélico

Sábado, no Alentejo, membros da Confissão Wicca Celtibera vão fazer uma cerimônia noturna dedicada a Endouellicus, a divindade tutelar do santuário de Rocha da Mina, como parte de uma semana cultural que vem se repetindo há anos pelas graças da administração municipal -- vejam só, uma cerimônia pagã com o aval do Estado! -- e como o sintoma mais evidente de um ressurgimento dos mitos e divindades da Ibéria, das quais Endovélico é o representante mais famoso.
Para me juntar à celebração, eu me inspirei nas 30 Semanas Devocionais que os Keméticos, ou seja, os Reconstrucionistas Egípcios, estão escrevendo em seus blogs, para tentar registrar aqui o que se conhece e o que se supõe sobre Endovélico, seguindo temas predeterminados:

1) Introdução
2) Primeiro Contato
3) Símbolos e Imagens
4) Mitos
5) Família
6) Panteão
7) Nomes e Epítetos
8) Aspectos e Variações
9) Concepções Errôneas
10) Oferendas
11) Festivais, Dias Santos, Épocas
12) Locais de Culto
13) Relevância Atual
14) Culto Moderno
15) Aspectos Mundanos
16) Valores do Panteão
17) Relações com Outros Panteões
18) Gênero e Sexualidade
19) Qualidades
20) Arte Evocativa
21) Música Evocativa
22) Texto Evocativo
23) Literatura Evocativa
24) Testemunho Positivo
25) Testemunho Negativo
26) Relacionamento
27) Enganos
28) Desconhecimento
29) Experiência Pessoal
30) Conselhos

...vamos ver o que sai daí...


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Viriato


Como os Gauleses tiveram Vercingetorix, e os Britânicos a rainha Boudicca, também os povos da Lusitânia tiveram um herói, um libertador, um mártir a ser lembrado – Viriato.

Pouco conhecido fora de Portugal, um virtual ninguém mesmo para os povos de língua e cultura portuguesas, é ele e a sua história, tão similar à dos heróis Celtas acima citados, o tema deste artigo.

Ainda hoje em Portugal pode-se perguntar a alguém quem foi Viriato, e esse alguém, sobretudo se for mais idoso, vai recitar a frase aprendida na escola primária: “era Viriato pastor nos montes Hermínios...”; mas, como costuma ocorrer, mito e verdade aqui se misturam. Embora a tradição popular sempre o tenha descrito como pastor de cabras nos montes Hermínios (a atual Serra da Estrela), é um consenso entre os historiadores modernos que Viriato seria do Sul (segundo J. Leite de Vasconcelos, do Alentejo; para Jorge Alarcão, talvez baseado na crônica romana de Diodoro, do litoral ao norte da foz do Tejo). Mesmo seu nome verdadeiro é desconhecido – “Viriato” significa “portador das vírias”, ou seja, dos grandes braceletes de ouro usados nos braços ou, no caso dos modelos maiores, nas coxas, e que seriam, talvez, a insígnia dos líderes dos bandos guerreiros.

Para as tribos Lusitanas, o direito de herança era patrilinear e exclusivo do primogênito, restando a seus irmãos sujeitarem-se a trabalhar para ele nas terras paternas ou unirem-se a outros deserdados em pequenos bandos especializados em furtos e saques nas comunidades vizinhas: não seria algo particularmente desonroso para os envolvidos, apesar de causar transtornos vários às vítimas dos saques, e não é demais ver aí, na tradição dos bandos de salteadores armados, a origem e o treinamento de batalha inicial que Viriato, filho de Comínio, teria tido.

E essa seria a sua vida, seguida de uma morte comum e do esquecimento completo, se não tivesse a águia de Roma lançado sua sombra sobre a Ibéria.

Os Romanos chegaram à Peninisula Ibérica inicialmente sem outra intenção que não a de fazer frente aos Fenícios/Cartagineses, já ali estabelecidos há séculos, tendo várias colônias no Sul (o Cineticum, atual Algarve) pacificamente mantendo rotas comerciais por todo o Mediterrâneo, pelas quais fluíam o ouro, prata e estanho ibéricos em abundância; após a derrota de Cartago e a dominação Romana sobre as cidades fenícias do Sul, os vencedores, agora donos do mundo conhecido, aproveitaram-se da riqueza assim disponível para reivindicar o domínio sobre toda a Ibéria.

Os vários pretores enviados por Roma fundamentaram sua conquista com sangue e traição: Sérvio Sulpício Galba, derrotado pelos Lusitanos em 151 aC, reverte o jogo e os derrota, mas, ao oferecer uma trégua honrosa aos vencidos, tão logo estes depuseram suas armas, ordenou o massacre de todos – poucos escaparam com vida, Viriato entre eles, e a notícia do ocorrido estarreceu a toda a Ibéria, a já conquistada e a ainda livre, e a revolta anti-Romana só fez crescer com o episódio.

Três anos depois, em 147 aC, o novo pretor, Caio Vetílio, enfrenta uma horda de 10.000 Lusitanos que haviam invadido a Turdetânia (sul da Espanha, perto de Gibraltar) e consegue por astúcia atraí-los para uma armadilha, encurralando-os numa fortificação abandonada, sem fontes de água ou estoque de alimentos, condenados a optar entre a morte por inanição ou a rendição-com-morte-ou escravidão.

Mas Viriato, que participou da invasão com o seu bando, e já tinha algum renome entre os Lusitanos pela sua bravura e senso estratégico apurado, não perdeu a calma. Esperou que o desespero lentamente tomasse conta dos outros bandos guerreiros ali presos com ele, pois só então estariam prontos a ouvir e acatar seu conselho – e falou.

Lembrou a todos ali presentes da traição de Galba, e de como destino igual lhes seria dado se se submetessem aos Romanos e se rendessem (“acaso Roma já respeitou alguma vez a palavra dada?”); apontou a ambição imperial de Roma como sendo inesgotável, e que não cessaria enquanto toda a Ibéria não fosse conquistada; e declarou que sabia perfeitamente bem como tirá-los do cerco para a liberdade, mas que para isso deveria ser ele, Viriato, a comandar todos os bandos e tribos em batalha, sem questionamentos.

A aclamação foi estrondosa. Viriato foi, ali, eleito chefe do que antes era uma horda indisciplinada, e agora se tornava o exército dos Lusitanos.

No dia seguinte, com ataques simultâneos em quatro pontos diferentes, rompeu o cerco Romano e fugiu com sua tropa, não sem antes abater e saquear os vencidos; de lá, derrotou Vetílio em Tríbola, e os seus sucessores, Caio Pláucio, Caio Unimano e Caio Nigídio, tiveram a mesma sorte.

A águia de Roma, alarmada com o rumo dos eventos, enviou para a Ibéria, agora não um pretor, meramente administrativo, mas um cônsul, Quinto Fábio Máximo Emiliano, que vence Viriato e o força a se retirar para Baikor (atual Bailén, Espanha) em 144 aC., mas de lá ele consegue incitar a Hispânia Citerior (ao sul do Ebro, leste da Espanha) à revolta, dando início à Guerra Numantina em 143 aC. e derrotando Quinto Pompeio e Quíncio, junto com Q. Emiliano.

O novo cônsul, Quinto Fábio Máximo Serviano, a muito custo consegue derrotar Viriato e forçar a sua retirada em 141 aC, avançando para o Cineticum e de lá subindo à Mesopotâmia-entre-Tagus-e-Anas (atual Alentejo, Portugal), sendo detido por Cúrio e Apuleio, chefes guerreiros aliados de Viriato, e retirando-se derrotado para a Bética (região do rio Guadalquivir, Córdova, Espanha), onde Viriato o derrota no cerco de Erisane, em 140 aC, e força a assinatura de um tratado de paz, contando com o cansaço e o medo dos Romanos para assegurar a paz com eles; Viriato entra para o seleto grupo dos Amici Populi Romani (Amigos do Povo Romano), dado apenas aos reis aliados (embora Viriato nunca tenha se autoproclamado rei).

Porém, o Senado quebra o tratado, como o próprio Viriato houvera previsto anteriormente, e Quinto Servílio Cipião é enviado à frente de novas tropas Romanas; Viriato tenta um acordo novo com Popílio Lenate, o governador da Hispânia Citerior, mas três guerreiros de seu próprio exército, Audax, Ditalco e Minuro, são por Lenate subornados para, na noite seguinte, degolarem Viriato em sua tenda.

Consumado o fato, após o pranto de todos os bandos agora unidos como um, foram concedidas a Viriato as honras de um rei tribal caído em batalha, mesmo que ele jamais tivesse reivindicado o título – jogos fúnebres, sacrifícios de bois, cabras, e mesmo de prisioneiros Romanos, libações de cerveja e vinho precederam o momento em que seu corpo, lavado e adornado com suas melhores roupas (que nunca usava, pois era conhecido sem temperamento avesso a vaidades e exibição) e armas, e as vírias que lhe deram o nome, foi posto na pira funerária sob o clamor dos Lusitanos, que davam seu adeus ao seu maior chefe e última esperança de liberdade para a Ibéria.

Os cronistas da época preservaram fragmentos de histórias e declarações que compõem um retrato fragmentado, mas coerente, de Viriato: homem simples, acostumado aos rigores do campo e da batalha, austero no comer e no beber, tomando para si nos saques apenas algo de que precisasse, como armas para substituir as danificadas, eloqüente e hábil no falar, venerado até a idolatria pelo seu bando de guerreiros prontos a darem a vida por ele, estrategista experiente, intransigente em relação ao que achasse correto.

Casou-se com Tangina, filha de Astolpas, rico proprietário de terras às margens do Tejo, que incialmente não viu isto com bons olhos pela falta de bens do noivo, bem como por suas relações comerciais e políticas com os Romanos (na festa do casamento, ao saber que havia Romanos presentes ao evento, Viriato ordenou que seus homens mantivessem-se armados e com os cavalos preparados para partir, e diante do altar como quem está de partida, recebeu uma noiva igualmente preparada, que não se fez de rogada e subiu na garupa do cavalo de Viriato sem olhar para o pai); mais tarde, Astolpas renegou as alianças com Roma e se uniu ao exército de Viriato (pouco antes da derrota final de Viriato, Popílio Lenate exigiu que Astolpas lhe fosse entregue como condição para o novo tratado de paz, mas Astolpas cometeu suicídio para não constranger o genro, agora aceito como filho).

Os fíli da Irlanda diziam: “O que é o Santuário que preserva? É a memória, e o que nela está preservado”.

Nesse espírito, no espírito Celta de preservar a memória dos Heróis, dedico este artigo aos Lusitanos do passado, na intenção de chamar quem o ler para participar na preservação da memória de Viriato e seus feitos, como exemplo de virtude para as gerações presentes e futuras.

Que Endovélico e as Divindades da Lusitânia ouçam estas palavras!


São Paulo de Piratininga,
14o. do Lughnasad, 2006