segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A Visão de Derg Corra

Neste final de semana, enquanto o Ramo de Carvalho e outros grupos da comunidade druídica celebravam Brasil afora os festivais de Lughnasad ou Imbolc, eu fiquei em casa cozinhando vírus no duplo calor da febre e do verão abrasador, jogado na cama, dormindo e acordando sem qualquer controle sobre nenhum dos estados.
Eis que, ao anoitecer, o Imbas fluiu sobre mim e me fez rever a cena central da história de Derg Corra:

(...) um homem no topo de uma árvore, um pássaro-preto no ombro direito, e na mão esquerda um grande caldeirão de bronze branco cheio de água com uma truta arisca dentro, e um gamo aos pés da árvore. E o homem fazia isto, quebrar avelãs, e ele dava metade da avelã ao pássaro-preto em seu ombro direito enquanto comia a outra metade; e ele retirava uma maçã do caldeirão de bronze em sua mão esquerda, cortava-a em duas, atirava uma metade ao gamo aos pés da árvore, e comia a outra metade. E bebia um e outro gole do caldeirão de bronze em sua mão, e ele e a truta e o gamo e o pássaro-preto bebiam juntos (...)

Uma cena tão precisa que, como John Matthews comentou em seu livro sobre Taliesin, sugere que seu autor a escreveu contemplando um ícone real da mesma; tive a certeza intuitiva de que havia algo naquela profusão de detalhes, algo que podia ser decifrado, como letras formando uma palavra, e me pus a meditar sobre a imagem, em seu todo e em cada parte.
E então eu a vi com olhos-de-druida, e uma revelação me veio -- os três animais, além de representarem os Três Reinos da cosmovisão Celta, tem em comum seus nomes em Irlandês, todos com a letra D:

Gamo -- Damh

Pássaro-preto -- Druid-dubh

Truta -- Breac-donn
("truta-marrom", ou Salmo trutta, a mais abundante na Irlanda e "arisca", como o texto a chama, aparentada com o salmão e com os mesmos hábitos migratórios)

E quanto aos três alimentos dos três animais, todos tem o C presente:

Aveleira -- Coll

Macieira -- Ceirt

Caldeirão -- Coire


D e C, iniciais de Derg Corra -- será que foi isso que fez Fionn descobrir, em seu transe profético, a identidade do homem sentado na árvore?
Um homem que inicialmente aparece no conto como um criado da cozinha, que brinca saltando sobre as chamas da lareira, que foge após ter rejeitado os avanços de uma amante de Fionn e ser caluniado por ela, subitamente está ali, na floresta, como se fosse uma versão irlandesa do Cernunnos gaulês -- o que significa isso? Quem se esconde detrás dessas camadas-sobre-camadas de significado?
A truta/salmão, a ave que tem "druida" em seu nome, o Gamo Rei da floresta, sugerem em conjunto o Druida enquanto sábio da Floresta, possuidor de segredos, mas quem me vem à mente, quando olho as avelãs do poço de Segais, as macieiras da Ilha das Maçãs, e as águas sempre fluindo do Caldeirão, é Manannán, o sutil mestre dos disfarces e enigmas, saltando como um salmão de um ao outro lado da fogueira, chamando a si os animais com sua magia (e talvez chamando o próprio Fionn, talvez para lhe ensinar uma lição sobre a conduta própria a um rei?)
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Antes que alguém diga algo, eu não estou afirmando que o Druida que criou esse conto o fez de propósito, juntando deliberadamente as peças do quebra-cabeça com a intenção proposital de embutir no conto uma lição seja de que tipo for; não, eu suspeito que a imagem veio "pronta" e inteira do Imbas, e que mesmo enquanto a recebia o Druida-autor fluía pelas várias camadas de significado nela presentes, durante o instante-fora-do-tempo que a visão durou, e que só lhe restou passar adiante o conto, oralmente primeiro e por meio da escrita mais tarde, sabendo que dentre os que ficassem, no futuro, diante da visão do Homem na Árvore, alguns teriam a Inspiração e veriam o que ela ocultava...
E aqui vai meu desafio à comunidade druídica brasileira: o que aconteceria se fizéssemos o mesmo com os outros contos que a nós chegaram, e se tentássemos "ler" suas imagens -- o que aconteceria?

Bendito o Imbas sempre-fluente,
Benditas as imagens por ele reveladas,
Benditos os que as interpretam,
Pois o Imbas fluirá também neles